segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Terá valido a pena o Natal?

por Israel Belo de Azevedo

Se houve no plano internacional
um tempo em que as armas repousaram inúteis.
Se também no plano pessoal
meu coração tiver descansado
de tantas batalhas: as necessárias e as fúteis.

Se diante do presépio tão surreal
que mistura gente com animal todo falante
eu tiver tido uma atitude de humildade tal
como se nada, nada mesmo, dependesse
dos joelhos que se vergam
por um instante.

Se minha alma elevou ao sideral
para um canto que me soou como divinal louvor.
Se meus olhos viram como igual
aquele que na esquina e no chão gelado
de mim não esperava palavras mas amor.

Se meus múltiplos desejos de “feliz natal”
forem inspirados de modo real
por Jesus Cristo
e eu recebi cada gesto facial
e ofereci todo sorriso trocado
mesmo expressos na superfície
como um compromisso.

Se o Salvador por um momento
se pareceu como o que é:
meu Senhor companheiro amigo.
Se todo o verbo que eu dito tiver
for uma afirmação de fé
que por um dia habite comigo

terá valido a pena mais este Natal.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Uma história de Natal

por Israel Belo de Azevedo

Príncipe tem cara de príncipe.
Rei tem aquele jeito de rei.
Não o meu, da história que contarei.

Príncipe nasce em palácio.
Tem um lindo berço de ouro o rei.
Não o meu, na história que contarei.

Se eu nascesse onde Ele nasceu
a ninguém eu contaria.
E você também não diria
se nascesse onde Ele seu primeiro choro deu.

Nosso príncipe, depois, quando saiu de casa,
para fazer o que tinha que fazer,
não tinha cama, mas seu pai era carpinteiro
e, quantas camas quisesse, podia fazer
e quando tinha cama, não tinha travesseiro.
“Ai que saudade da mamãe”, devia Ele dizer,
pois ela tudo cuidava com todo esmero.

Mas quero falar mesmo do príncipe pequeno
Não do príncipe já crescido, mas do infante.
Preciso começar com a história de sua mãe
que começa com a história de um anjo falante.

Ela estava em casa. Todos tinham saído.
Ela estava no seu quarto. Ai que silêncio.
Então, o anjo de boas notícias se aproximou.
Eu disse o nome dele? Então, vá: Gabriel.
Maria pensou que fosse um castigo do céu,
mas do céu sempre vem notícias para o nosso bem.
E desta vez não foi diferente, e o anjo falou
que, para a alegria de todos, ela teria um neném,
porque para Deus não existe a palavra “impossível”.
Falou e se foi, deixando a moça cantando
feliz por aquilo que do anjo escutou.

E grávida ela ficou. Perto do neném nascer,
a barriga pesando, uma viagem tiveram que fazer
a mãe montada num jumentinho, saindo de Nazaré,
para ordens do governo obedecer.

José foi junto. Não fugiu à responsabilidade
Chegaram os dois, quer dizer os três,
a Belém – este é o nome da cidade –
só para entregar seus documentos de identidade.

A cidade estava cheia, com tanto turista
por causa da ordem que o governo tinha dado.
José bateu em muitas portas,
umas com placas certas e outras com placas tortas
em busca de um lugar para se hospedar
E diante de cada um tinha sempre que escutar:
– Desculpe, amigo, nosso hotel está lotado.

Foi quando viram uma placa de hotel simplezinho
e entraram, como se fossem descansar.
Simpático, o moço daquela estrebaria
disse que vaga pros dois também não havia.

Apareceu uma mulher, vendo a difícil situação
e chamou os dois para os fundos da pensão,
onde os animais ficavam perto de uma manjedoura
que podia servir de berço se não importassem
com a condição,
quando do nascimento do filho mais velho
chegasse a hora.

Eles cumpriram com o seu dever,
mas Maria estava pesada para voltar a Nazaré.
Podia ser perigoso para o bebê.

Resolveram esperar em Belém.
Maria começou a sentir as dores que as mulheres têm.
Ela gemeu:
– Ai, José, a hora está para chegar.
Não seria melhor um hospital procurar?
Mas naquela cidade não havia hospital.

E rápido atravessaram o esperado portal
da única estrebaria em que puderam se hospedar.

José reclamou, enquanto Maria gemia:
– Meu filho não pode mais aguardar.
Ele vai nascer aqui mesmo nesta portaria
e uma cama pra ele temos que arranjar.

E rápido arrumou as roupas no chão
porque não havia mesmo outra solução.

E a dor aumentava, aumentava, aumentava.
Maria pensou nas palavras de Gabriel:
onde estava o anjo que não a ajudava?

Fizeram o melhor que puderam e Maria descansou,
mas foi por alguns minutos, pois a dor aumentou.
Maria em silêncio. Ela chorou de medo e dor.
Mas de novo se lembrou do que o anjo lhe falou.
José segurou as suas mãos. A mulher ajudou.
Era noite e o silêncio quase nada durou.
De repente, um choro alto se escutou.
– É um menino – José mais alto gritou.
Então, agora de alegria, Maria novamente chorou.
E das palavras do anjo Maria outra vez recordou.

E assim, olhando para o menino no
colo, adormeceu.
Depois da agitação, a calma se restabeleceu.
E o silêncio voltou.
Os animais se calaram.
O porteiro cochilava.
José, porém, a tudo vigiava.

De repente, lá fora a correria.
Acabou a calma na estrebaria.
Parece que a noite virou dia.
José acordou Maria.
– Estou ouvindo uma gritaria.
Parecem pastores, mas o que aqui fariam?

Entrou o homem da portaria,
pedindo se podiam chegar os visitantes.
– Quem são? – perguntou José, hesitante.
– São os guardas dos animais do campo.
Querem ver o menino que nasceu há instantes.

Maria se lembrou do anjo Gabriel:
– Deixem que entrem para ver o menino.

Entraram com as roupas cobertas de neblina.
Ficaram encantados. Tudo conferia com a voz do céu.

Voz do céu. Que voz do céu? Não custa perguntar.
José perguntou:
– Como souberam que meu filho nasceu?

Um deles logo respondeu, porque era o mais agitado:
– Ouvimos uma voz do céu, que dizia:
“Hoje em Belém finalmente nasceu o Messias.
Ele está numa manjedoura agora deitado”.
Depois um coro de anjos deixou uma canção:
“Nas alturas dêem a Deus toda a glória,
e na terra anunciem de todo o coração
a paz que Ele quer que alcance a história”.

Depois da visita, todos saíram. Eles gritavam.
As palavras do anjo ainda ecoavam
porque todas se confirmavam.
É por isto que “glórias a Deus” davam
e pelas ruas a sua alegria cantavam.

Enquanto José em tudo prestava atenção,
Maria tudo guardava no coração.

E os pastores não foram os únicos a receber
a notícia
de que em Belém um príncipe nascido havia.
José não soube então; Maria não soube então,
mas muito, muito, muito longe daquela estrebaria,
uns cientistas foram informados por
divina instrução
que em Belém um grande príncipe nasceria.
E começaram uma viagem que muito tempo levaria.

Em Belém, uma semana se passou e tudo corria bem.
Logo um mês se passou e tudo corria muito bem.
Era chegada a hora de irem a Jerusalém,
para apresentarem na igreja o neném.

E lá estava um velhinho chamado Simeão.
Quando viu o menino, deu um grito de satisfação:
– Oh! bondoso Deus, meus olhos viram a salvação
que enviaste depois de tanta preparação.

Na frente de todos, levantou a mão
e ofereceu o menino a sua bênção.
E lá estava também Ana, uma mulher de oração,
que também apresentou a sua gratidão
porque também tinha tido a mesma emoção.

Depois do culto, a família voltou para casa.
Ia começar uma outra dura viagem.
Aqueles cientistas lá de longe – lembra-se? –
depois de muita pesquisa, chegaram a Belém,
com muitos presentes na bagagem.
Passaram por deserto e oceano,
sem aviões e sem navios
por montanhas e rios,
sem ônibus e sem trem.
Tinham apenas um plano:
Visitar um rei e lhe fazer uma homenagem.
Enquanto isto, apavorado, em Jerusalém,
o rei do país esperava que eles o caminho
lhe ensinasse para que pudesse pegar o neném.
Mas eles foram por outra direção para o oriente.
O rei era mesmo muito feroz.
Por isto, depois de ouvirem de Deus a voz,
fugiram, de noite, no maior segredo,
em meio a muitas lágrimas de medo,
para um lugar seguro, mas bem distante
onde não lhes podia alcançar o valente.

E ali ficaram até o dia de voltar para Nazaré,
onde ficava a casa e a carpintaria de José.
E ali o menino crescia e se fortalecia,
enchendo-se de sabedoria
porque a graça de Deus nele residia.
E tudo no seu coração guardava Maria.

Como todo menino, este menino cresceu
e um homem adulto se tornou.
Seu tempo de partir nasceu
para fazer aquilo para o qual se preparou.

E eu vou lhe contar
o que este Amigo sempre Maravilhoso,
este Deus muito Poderoso,
este Pai eternamente Amoroso
e este Príncipe Valoroso,
– este é o nome completo de Jesus –
fez, pelo mundo afora,
para a nossa história se encerrar...
mas, calma! Espere. Não será agora
que a melhor aventura vai começar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Natal no complexo do Alemão


Por Ronaldo Martins

Na semana passada os brasileiros acompanharam pela TV a operação militar que a imprensa chamou de “guerra contra o tráfico”. Pouco se falou sobre o fato de que, durante décadas, a população do conjunto de comunidades do Complexo do Alemão viveu abandonada à própria sorte, sem a presença e o apoio do Estado. O que se destacou foi o fato de que, triunfalmente, a polícia e as Forças Armadas “libertaram a população do jugo dos traficantes”.

A cinematográfica “libertação” demonstrou o que todos sabemos: se há “vontade política”, o Estado pode ter êxito na promoção do bem comum.

Mas de que tipo de libertação nós precisamos? A que provém da vontade ou a que provém da esperança? Essa questão me veio à mente enquanto assistia, estarrecido, à “guerra urbana” no Rio de Janeiro, em pleno domingo de Advento.

O que distingue a vontade da esperança? Segundo Sponville, “a esperança é um desejo que se refere ao que não depende de nós; a vontade é um desejo que se refere ao que depende de nós”. Corroborando com o que afirma o filósofo, eu diria que a esperança da libertação proposta no Reino de Jesus Cristo se funda em uma novidade de vida que não depende de nós mesmos, mas da graça de Deus.

É bom que os moradores do Complexo do Alemão tenham sido libertados da opressão imposta pelos traficantes. Mas devemos ter claro em nossas mentes que eles ainda não receberam o verdadeiro presente de Natal. Apenas tiveram paga uma dívida que poderia ter sido quitada há muito tempo se houvesse vontade.

Que a esperança resista no coração daquela comunidade e que as famílias do Alemão continuem ansiando a libertação definitiva, aquela que foi assim descrita pelo profeta Isaías: “ele edificará a minha cidade, e soltará os meus cativos, não por preço nem por presente”. (Isaías 45:13)

A liberdade apregoada no tempo do advento é aquela que se estabelece como direito de todos os cidadãos do Reino de Deus. É a liberdade que nasce da esperança de que o Senhor está no controle das nossas vidas. É a liberdade que não depende da nossa própria vontade. É a liberdade que advém da verdade, nos guiando para o caminho no qual a presença de Jesus Cristo é definitiva.

Neste tempo de Advento podemos cultivar nossas vontades ou nossa esperança. Na última segunda-feira, a Federação do Comércio divulgou uma pesquisa demonstrando que o índice de otimismo dos consumidores de Belo Horizonte bateu o recorde histórico. Segundo a pesquisa, todos querem consumir como nunca no próximo Natal. Essa é uma vontade que depende apenas de nós. Mas, com certeza, é a maneira menos adequada de esperar pelo Natal.

Talvez devamos aceitar o desafio de reconstituir o sentido do Advento como um tempo de esperança. Podemos e precisamos cultivar a esperança de que o Natal represente, a cada ano, um recomeço, o despertar de um novo dia, no qual ganhamos força para lutar pela transformação definitiva da sociedade e do ser humano.

Quais são as imagens que lhe vêm à mente quando você pensa no Natal? Quais são os desejos que você cultiva? Se eles se referem apenas a prazeres passageiros, como presentes e ceias fartas, são mera vontade humana. Se remetem você ao sentimento de que um mundo novo é possível a partir da libertação preconizada no Reino de Deus, os seus desejos estão revestidos da esperança do Natal.

Feliz Natal para os moradores do Complexo do Alemão!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Porque Jesus não anda com os fariseus.

Por Ariovaldo Ramos,

Lucas, no capítulo 15 de seu livro, registra um diálogo entre Jesus e os fariseus, que reclamavam do fato de Jesus receber e comer com publicanos.

A queixa deles fazia sentido: os publicanos eram gente que havia traído Israel e se tornado cobrador de impostos para os romanos. Eram como os que, na segunda guerra mundial, colaboraram com os nazistas que haviam invadido o seu próprio país.

Para os fariseus, o que faria sentido seria Jesus andar com eles, afinal, entre eles e Jesus, havia mais concordância doutrinária do que entre Jesus e qualquer outro partido judaico.

Jesus respondeu-lhes contando três parábolas: a ovelha perdida, a moeda perdida e o filho perdido.

Parábola é uma “estória” com fundo moral, para destacar um ensino.

Nessas três parábolas Jesus explica aos fariseus porque não andava com eles.

Na parábola da ovelha perdida, Jesus pergunta: Que pastor, tendo cem ovelhas, ao perder uma, não deixa no DESERTO as noventa e nove e sai à procura da perdida, e, quando a encontra, vai direto para casa para festejar com os amigos?

A resposta para essa pergunta é: nenhum pastor faria isso, pois perderia as noventa e nove, e tudo o que teria seria a ovelha perdida, se a encontrasse. A menos que estivesse abandonando as noventa e nove.

Era isso que Jesus estava a fazer, abandonando as noventa e nove. As noventa e nove ovelhas representavam os fariseus.

Jesus explica tê-los abandonado porque há mais alegria por um pecador arrependido, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento.

Por que Deus não ficaria alegre com noventa e nove justos que não precisam de arrependimento, se, como disse o salmista: Deus conhece o caminho dos justos? (Sl 1.6)

Porque justos são os que sempre se arrependem e não os que se julgam não necessitados de arrependimento.

Os fariseus eram assim, se julgavam justos que não precisavam de arrependimento, mas Jesus os denunciava por serem justos aos seus próprios olhos, mas não justificados por Deus (Lc 18.11-14)

Na parábola da moeda perdida, Jesus diz que ele é como a mulher que, tendo perdido uma dracma (salário de um dia de trabalho), revira toda a casa até encontrá-la, e, ao encontrá-la, chama vizinhas e amigas e faz uma festa.

A casa é Israel, e o que é revirado é tudo o que os fariseus, por conta própria, chamaram de sagrado, e que só servia para passar uma imagem falsa de Deus, afastando os homens da possibilidade do arrependimento. A dracma representava os publicanos.

Na parábola do filho perdido, Jesus concorda com os fariseus quanto aos publicanos: deixa claro que são pessoas que jogaram para o ar tudo o que tinham junto ao Pai, para viver dissolutamente, seduzidos pelos romanos, que, por fim, apenas lhes estavam oferecendo viver numa pocilga.

Mas o Pai jamais desistiu dos publicanos, mantendo-lhes aberta a porta do arrependimento.

Entretanto, os fariseus, a exemplo do irmão mais velho, não o admitiam. Entendiam-se como juízes de seus irmãos, não dando crédito ao arrependimento dos mesmos, até por julgá-los incapazes de tal ato.

Os fariseus, como o irmão mais velho, não conheciam, de fato, o Pai, e não o amavam; pior, entendiam que o Pai tinha uma dívida para com eles, por causa da fidelidade com que o serviam sem nada receber em troca. E, em não amando o Pai, não amavam a ninguém. E quem não ama não considera a possibilidade do arrependimento do outro.

Jesus, em muitos casos, podia até ter o mesmo enunciado que os fariseus, mas não tinha o mesmo coração.

E... Como disse o poeta e compositor Claudio Manhães: “Diferente é o coração, a diferença é o coração!”

A boa doutrina tem de, necessariamente, gerar um bom coração, senão será, mesmo que correta, um enunciado vazio, por não ter frutificado no coração de quem a prega.

©ariovaldoramos

sábado, 27 de novembro de 2010

Deus é inocente

Por Ed René Kivitz

"Deus sabe o que é padecer"

"Se o céu existe, Deus tem muito que explicar". Essa afirmação do Robert De Niro faz eco em meu coração. Também experimento o incômodo de deixar Deus sub judice diante do sofrimento humano. Não me conformo diante das injustiças da vida. O argumento de que todos somos maus e em última análise ninguém mereceria ser poupado do mal não me satisfaz. Sou daqueles que acreditam que coisas ruins acontecem às pessoas boas e acalentam silenciosos uma certa contrariedade quando coisas boas acontecem às pessoas ruins. Acredito, sim, que no mundo existe gente boa e gente ruim. E também acredito que a maioria das pessoas não merece a tragédia que sofre.

O casal que perde o filho recém nascido, o adolescente que fica tetraplégico após um displicente mergulho na piscina do clube, a mulher que se vê mutilada pelo câncer, o pai de família que percorre as ruas na indignidade do desemprego e que, por vergonha ou por caráter - as duas coisas, não sabe nem mesmo esmolar, são situações cotidianas que me fazem dormir mal sob o peso do veredicto: Deus tem mesmo muito que explicar.

Mas trago no coração duas outras certezas que me apaziguam a alma, me dão coragem para viver e me animam à solidariedade, ainda que tímida e não poucas vezes insuficiente. O céu existe. Não sei como é. Não sei onde fica. Não sei quando acontece. Mas que existe, existe. Este mundo não é a realidade definitiva. O presente estado das coisas não é a versão final da obra de Deus. Uma coisa é o mundo em que vivemos. Outra, o mundo em que viveremos eternamente. E a respeito das coisas que acontecem neste mundo e não deveriam acontecer, e que não acontecerão no mundo vindouro, Deus já se explicou. Deus se pronunciou em alto e bom som, há mais de dois mil anos, na cruz do Calvário, onde foi morto Jesus de Nazaré, o Cristo, unigênito de Deus.

A tradição cristã afirma que "Deus prova seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores". Quem duvida do amor de Deus deve olhar para o Calvário. No dia em que o sofrimento se agiganta e a visão do amor de Deus fica ofuscada pelas lágrimas da dor quase insuportável, a cruz do Calvário é o grito apaixonado de Deus. John Stott disse que na cruz de Cristo Deus justifica não apenas a humanidade, mas justifica a si mesmo. Na cruz de Cristo, Deus se levanta diante de todos os que o acusam de ser injusto, tirano, indiferente ao sofrimento e à dor humanas, e pronuncia a sentença de inocência sobre si mesmo. A cruz de Cristo é a prova irrefutável do amor de Deus.

Na cruz de Cristo há quatro afirmações que provam o amor e definem a inocência de Deus. Na cruz de Cristo Deus é declarado inocente porque se solidariza com as vítimas do mal e da malignidade. Através da morte de Jesus Cristo, seu Filho, Deus afirma "O mal também me feriu", "O sofrimento chegou também à minha casa", "As lágrimas pelo padecimento injusto também rolam dos meus olhos", "Eu e as vítimas do mal e da malignidade somos um".

Aqueles que imaginam que o Deus que "habita em luz inacessível" vive confortavelmente no ar condicionado do céu, enquanto suas criaturas penam contra o diabo na terra do sol, estão absolutamente enganados. Deus tem a cara suja pelas lágrimas que borram seu rosto sofrido com a dor de cada um dos seus filhos por adoção e do seu unigênito. Na cruz de Cristo Deus sofre conosco. Sofre por nós. Sofre em nosso lugar. Deus sabe o que é padecer. Seu Filho é homem de dores. Ovelha muda entre seus sanguinários tosquiadores. Na cruz de Cristo Deus atravessou não apenas o vale da sombra da morte. Atravessou a própria morte.

Na cruz de Cristo Deus é declarado inocente porque não é contato entre os promotores do mal, mas entre os que sofrem os danos da malignidade. Na cruz de Cristo Deus afirma "Não olhem para mim como se eu ordenasse o mal", "Quando estiver sofrendo, não me conte entre os que lhe causam a dor", "Na cruz, eu não batia pregos na mão de ninguém. Na cruz, a mão sob os pregos ferozes era a minha". Quase posso escutar Deus dizendo à mãe que chora a filha atropelada: "Não me tome como quem passou por cima, eu estava em baixo, sendo esmagado sob o peso da borracha negra que me dilacerava a carne e a alma".

Na cruz de Cristo Deus sofre o mal. Na cruz de Cristo Deus é exposto como vítima da malignidade e não como algoz que causa dor e sofrimento. Na cruz de Cristo os verdadeiros promotores da morte são publicamente desmascarados. Cai o pano. E todo mundo pode ver que Deus não está com mãos sujas de sangue inocente. Na cruz de Cristo Deus é a mão inocente que sangra.

Na cruz de Cristo Deus é declarado inocente porque fica evidente que a causa do sofrimento é o pecado da raça humana. Os pecadores estão pensos nas cruzes laterais, mas a crua do meio sustém um inocente. Na cruz de cristo Deus afirma: "Vocês deflagraram o mal", "Vocês abriram a caixa de Pandora", "Vocês soltaram a besta fera", "Vocês macularam o Paraíso". O aviso ainda ecoa pelo universo: "No dia em que pecar, certamente morrerás". A presença da morte é evidência de pecado. E o pecado é responsabilidade da raça. A cruz de Cristo somente se explica porque o pecado que a faz necessária. Naquele dia em que Deus provava seu amor para conosco éramos de fato ainda pecadores.

Na cruz de Cristo Deus é declarado inocente porque é o que morre, e não o que mata. Na cruz de Cristo pende o justo morrendo a morte dos injustos. O veredicto está lançado: há pecado, pois que haja morte. O salário do pecado é a morte, disse o apóstolo. A justiça do Deus três vezes santo há que ser satisfeita. Deus está diante de seu dilema eterno: matar ou morrer. E sua opção é definitiva, desde antes da criação do mundo: morrer. Na cruz de Cristo Deus faz sua escolha e anuncia sua disposição de amor absoluto: se alguém tem que morrer para que a justiça volte a brilhar no universo maculado pela culpa da raça humana, que viva a raça e que morra eu-Eu.

O primeiro dos dilemas é criar ou não criar. O segundo é criar com liberdade ou sem liberdade. O terceiro é assumir o ônus da liberdade ou deixar este ônus nas mãos da criatura. Deus faz as escolhas que o machucam, que lhe causam dor, que o fazem sofrer, que o diminuem. Simone Weil diz que "Deus e todas as suas criaturas é menos do que Deus sozinho". Deus escolhe criar. Escolhe criar um ser livre, pois não fosse livre não seria à imagem do Criador. E escolhe arcar com ônus da liberdade que concede à sua criatura. Na cruz de Cristo está deus, dando ao rebelde o direito de existir. Na cruz de Cristo está Deus entregando a sua vida, voluntariamente, em favor dos pecadores. O mal deflagrado pela raça levanta sua sombra sobre o trono de Deus. E Deus se levanta como um Cordeiro que se doa, pois escolhera morrer, em detrimento de matar. Na cruz de Cristo está o Deus que morre para que todos tenham vida, vida completa, abundante vida.

Fonte: IBAB

sábado, 20 de novembro de 2010

O deserto de João Batista

por Marcos Soares

Amigos, houve um outro sujeito bastante interessante que conviveu com um deserto pela sua vida toda. Uma das figuras mais excêntricas em toda a Bíblia, de quem pouco se fala e a respeito de quem os detalhes fornecidos são capazes apenas de relacioná-lo com aquele típico profeta estraga-prazeres. Suas vestes eram fora de moda e rústicas. Sua dieta, um tanto esquisita. Ele cresce e ministra no deserto (Lc 1:80). Ele tem uma vida frugal e no mínimo diferente. Lembra muito o Elias do Velho Testamento, por seus modos não convencionais e pela coragem de denunciar os podres dos palácios. Aliás, assim ele é escatologicamente identificado pelo próprio Senhor Jesus (v.14), de quem também recebe o título de “o maior nascido de mulher”.

Este João, quando lhe perguntavam quem era, tinha uma resposta direta e objetiva, na ponta da língua: “sou apenas uma voz”. Importante para a nossa reflexão é que esta voz clamava justamente no deserto. Apesar de suas credenciais extremamente elevadas, ele nunca pretendeu ser mais do que isso. Nem mesmo quando os outros tentaram a fazê-lo (Jo 1:19-23). Tinha uma missão bem definida e concentrou todos os seus esforços para cumpri-la. Viveu e ministrou isolado e solitário. Sim, há muitas e boas lições a respeito do deserto na vida de João Batista.

Desertos não preparam celebridades. Primeiro porque elas não gostam do ostracismo. Elas precisam estar na mídia. Quem quer a luz das câmeras apontada para si não pode ir para o deserto. Elas não o alcançarão ali. Depois de viver e crescer nesse ambiente rude e solitário, João Batista, o maior de todos os profetas estava pronto para dizer: “Convém que ele cresça e eu diminua” (João 3:30). A julgar pelos títulos cada vez mais criativos e pomposos, os atuais “profetas” preferiram a versão do “convém que ele cresça e eu apareça”. Talvez esteja falando um pouco de deserto para essas versões modernizadas de profetas.

Desertos deixam uma marca precisa sobre o valor do tempo e da vida (Mt 3:1,2). João Batista tinha isso como base da sua mensagem (“Arrependei-vos porque o tempo está próximo”), além de ter entrado e saído de cena na hora exata. Ele era um arauto, alguém que precedia o Rei. Uma vez feito o seu serviço, ele ficou na dele. Passou o bastão e os discípulos que tinha e não teve medo de apresentá-los a Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” foi a senha para que todos entendessem claramente que o seu ministério tinha chegado ao fim. Sem crise, sem ciúmes, sem ressentimentos. Era a prova de que ele tinha aprendido no deserto que as coisas tem que acontecer no momento certo.

Desertos preparam pessoas dispostas a não negociar valores eternos (Mt 14:3-5). Quem vive e trabalha no deserto, depois de tudo que passou ali, saberá manter-se forte o suficiente para não se dobrar diante dos mais poderosos (Mc 6:20). O deserto forja um caráter provado e uma estrutura forte. Desertos geram mais do que idealistas ou visionários. Desertos geram pessoas com convicções inabaláveis. Não tente subornar quem foi criado no deserto, porque vai se dar mal. Vai ouvir o que não quer e mais um pouco.

Pois é. Os desertos fizeram parte da vida de gente importante. Desertos foram a moldura, árida, inóspita, cruel até, mas que abrigou verdadeiros tesouros. Não tenho procuração para falar em nome de nenhum desses personagens. Apenas imagino que se algum deles tivesse a opção, antes de conhecer o fim da história, de viver em um ambiente refrigerado, com comida farta, cama confortável, piscina aquecida e coberta, rodeado de mimos e bons amigos ou viver num deserto, é possível que eles tivessem ficado com a primeira opção. Digo isso porque penso que seria também a minha escolha. Também não quero falar em seu nome mas, cá entre nós, tenho forte impressão de que também seria a sua. Ninguém escolhe o caminho mais difícil. Não é natural.

Acontece que, como diria o antigo hino de William Cowper. “Deus se move de maneiras misteriosas” e sabe melhor do que qualquer um de nós quais são os efeitos da vida mansa e fácil sobre o espírito humano. Para formar um grande homem de Deus que, para citar o escritor Gene Getz, não aparece de repente, são necessários alguns fatores que os desertos podem oferecer. Foi assim que aconteceu com esses homens que analisamos rapidamente nas últimas semanas.

Se desertos fizeram parte da vida desses gigantes, por que não fariam parte das nossas? A menos que a gente se contente a manter as coisas como estão e continuar nossa vidinha sem sustos e sem alterações significativas.

sábado, 13 de novembro de 2010

O deserto de Elias


por Marcos Soares

Amigos, outro personagem que viveu um momento de deserto foi o profeta Elias. Ele vinha de uma acachapante vitória contra os profetas de Baal, aos quais havia desafiado de uma maneira corajosa e ousada no monte Carmelo. Num ato de fé descomunal, ele faz cair fogo do céu que consome seu altar, enquanto os idólatras nada conseguem com suas conjurações demoníacas. Ocorre que este triunfo no monte acabou por desencadear uma perseguição feroz da parte da rainha pagã Jezabel (que havia casado com Acabe). Centenas de profetas do Senhor foram mortos. Elias então, assustado e com medo de ser ele mesmo assassinado, fugiu para o deserto. Chegou ali, depois de caminhar um dia inteiro, sentou-se debaixo de um arbusto e pediu para morrer. Ele não agüentava mais. Estava cansado, desanimado, temeroso. Dormiu. Leia os detalhes desta história em I Reis capítulos 18 e 19. Para resumir, Elias ficou quarenta dias vagando por aquele deserto, até chegar ao monte Horebe.

Os acontecimentos daqueles dias são bastante didáticos. Após o atingir o ápice do seu ministério, Elias estava enfrentando agora a realidade mencionada por Tiago a respeito da sua vida: ele era um homem semelhante a nós. Ele enfrentou sentimentos que eu enfrento. Teve medos que eu tenho. Pensou em desistir de tudo como eu já pensei. Quis ficar sem ver a cara de ninguém, como muitas vezes eu fiquei. Achou que só ele estava preocupado em ser fiel, como algumas vezes já achei. E aí o deserto de Elias começa a fazer sentido para mim, porque à semelhança de Moisés, Elias saiu dele bem diferente do que entrou.

Desertos vêm depois de vitórias retumbantes. A depender de alguns fatores, como a nossa personalidade, capacidade de resistência a fortes emoções e estresse, entre outros, algumas pessoas podem se esgotar fortemente após grandes realizações para Deus. É normal. Apesar de que a atitude de Elias em fugir e se esconder não estava totalmente correta (como Deus mesmo lhe disse), era compreensível. Desertos são o primeiro lugar para onde queremos ir quando percebemos que o mundo se virou contra nós, apesar e por causa de estarmos fazendo exatamente o que Deus queria que fizéssemos naquele momento. As conquistas extraordinárias que o Senhor nos permite desfrutar não são garantia de que estaremos sempre cobertos de louros, recebendo homenagens em festas de “Os Melhores do Ano”. Muitas vezes elas nos levam a confrontar interesses poderosos, tradições perigosas e mentes fossilizadas. A reação, na maioria das vezes, não é nos aplaudir, mas desembainhar sua espada e sair correndo atrás de nós e de todos aqueles que viram sentido no que Deus fez.
Desertos são lugares solitários, mas que não escapam do cuidado de Deus. Quando acordou depois da primeira noite naquele lugar inóspito, havia uma mesa de café da manhã posta para o profeta. O garçom era um anjo. Estava tudo tão bom, que ele comeu, bebeu, virou para o outro lado e dormiu de novo. O anjo o chamou de novo e o animou para continuar a caminhada, que seria longa. Deus não tinha perdido Elias do seu radar. Deus não estava alheio aos acontecimentos. Ele sabia que Elias precisava de força física para suportar o que vinha pela frente e providenciou o necessário para supri-lo. Que bom saber que o Senhor não esquece de nós, mesmo nos dias em que parece que até o próximo pedaço de pão vai faltar.

Desertos nos levam a encontros inusitados com Deus. Quem de nós tentaria achar Deus numa caverna? Pensamos em encontrá-lo num templo cristão, num acampamento evangélico, num retiro espiritual, no nosso quarto de oração. Numa caverna não. Já houve quem o encontrasse na cabana, mas na caverna, não. A bem da verdade, não foi Elias quem encontrou o Senhor. Foi o Senhor quem bondosamente foi atrás dele ali, sabendo e compreendendo graciosamente o delicado momento em que seu profeta se encontrava. Encontrou-o ali no escuro para revelar-se a ele de forma única. No fundo da caverna, uma pergunta transformadora: “Que fazes aqui, Elias”? Elias tinha lá suas razoes para estar ali. Para ele, elas eram mais do que justificáveis. Mas Deus tinha outra opinião. O Senhor o leva para a entrada da caverna e faz passar diante de seus olhos uma grande tormenta. As pedras rolam monte abaixo, as paredes rochosas da caverna estremecem. Depois vem um terremoto medonho. Depois um fogo. Diz o texto que Deus não estava em nenhuma dessas manifestações. Seu poder foi manifesto, mas ele não estava ali. Só depois dos espetáculos, num cicio tranqüilo, é que Deus fala ao coração do profeta. Que experiência! Só que já passou por ela sabe descrever o que Elias sentiu naquela hora.

Desertos afinam nosso autoconceito de compromisso com Deus. Foi no deserto que Elias descobriu que havia 7.000 remanescentes em Israel, que não haviam dobrado seus joelhos a Baal. Gente que estava escondida, discreta e clandestina, mas cujo coração era fiel a Deus. Enquanto Elias está ali, achando que ninguém mais está preocupado em servir a Deus e que todo mundo virou idólatra, Deus lhe faz ver que tem gente que, apesar de se manter anônimo, acabava mostrando mais coragem. Afinal, eles estavam lá no meio do povo, enquanto o fiel e ortodoxo profeta estava escondido no deserto.

Desertos precedem escolhas importantes. Logo após sair desse período desértico e solitário, Elias teve duas escolhas. Tudo bem que uma delas, a escolha do novo rei de Israel, Jeú, foi feita pelo próprio Deus. Mas a outra ficou por sua conta: escolher Eliseu para ser o seu sucessor. Eliseu veio a se tornar um dos maiores profetas de toda a história de Israel. Só fez menos milagres registrados na Bíblia do que Jesus. Bendito seja o deserto que fez Elias lembrar desse moço. Seu ministério foi além, em vários aspectos, do próprio ministério de Elias.

Gostaria mais uma vez de dizer que os desertos são maravilhosos. Continuo achando que são lugares terríveis. O valor que eles tem a oferecer não é o conforto, a segurança ou a boa vida. Nada disso acontece por lá. Seu inestimável valor está nas experiências únicas e inesquecíveis que vivemos neles.

sábado, 6 de novembro de 2010

O deserto de Moisés


Por Marcos Soares

Amigos, há muitos anos comprei um CD do Don Francisco (Come Away), em cuja capa ele mencionava o fato de que o deserto foi muito importante na vida de grandes homens de Deus. Abraão, Jacó, Moisés, Davi, Elias, João Batista, Elias, Felipe são alguns exemplos. Desde então venho meditando nessa verdade, vez por outra mencionando-a nesta coluna. Já percebeu como esses cidadãos foram afetados por esses momentos de aridez, solidão, reflexões profundas e muito sol na jaca?

O deserto é pedagógico. Não foi à toa que Deus levou essa galera acima da média para uma temporada de areia e calor. O importante não é ver porque nem como eles entraram, mas como foi que eles saíram dele. Veja o caso de Moisés. Aos quarenta anos, ele achou que estava pronto para a vida, que sabia tudo e que podia tornar-se um grande libertador. Tinha noção exata da sua origem, era forte como um touro, bem treinado na arte da guerra, influente e justo. Mata o egípcio, porque oprimia a um do seu povo e esconde-o na areia. Quando a coisa aperta, ele foge. Para onde? Para o deserto de Midiã. Ali, além de arrumar um casamento, arrumou também um emprego cruel (comparado à vida de príncipe candidato ao trono da maior potência mundial de seus dias, o fabuloso Egito): cuidar de ovelhas no escaldante solzinho do deserto.

O grande pregador D.L.Moody dizia que Moisés passou quarenta anos achando que ele era alguém; depois passou outros quarenta anos aprendendo que ele não era ninguém; finalmente viveu quarenta anos vendo o que Deus é capaz de fazer com um ´ninguém´. Sempre achei isso fantástico.

O deserto “baixa a nossa bola”. Quando o encontramos aos oitenta anos, não conseguimos mais ver os traços da prepotência anteriormente registrada. Quarenta anos afastado do brilho dos holofotes e das festas do palácio tinham tornado Moisés um homem que tinha dificuldade até para se comunicar. Há quem afirme que o “ser pesado de língua” signifique nada menos do que gagueira. O homem tinha perdido a capacidade de falar normalmente. Imaginem o príncipe outrora engomado agora com a pele grossa, turbante na cabeça e gago. Nada no meio das riquezas e glamour do Egito poderia ter feito com que ele baixasse a bola. O deserto conseguiu. Levou quarenta anos, mas conseguiu.

O deserto ajusta nossa perspectiva do tempo. Afinal, acredite, quarenta anos no deserto demoram muito, mas muito mais do que quarenta anos no palácio! São os mesmos anos de 365 dias, mas a sensação térmica torna cada dia muito mais longo. Quanto valem quarenta anos num deserto? Deve chegar uma hora em que o tempo não passa mais. Tudo vira uma coisa só. Todo dia é o mesmo sol, a mesma sede, a mesma solidão, o mesmo tudo. São tempos em que esperar pelo amanhã chega a ser difícil. Dias melhores não são esperados. Apenas dias iguais. E assim, vivendo um dia depois do outro, assando os miolos sob o sol de zênite, tudo fica tão parecido que quando uma sarça começa a arder sem se queimar, não tem como não ser notada. Se estivesse no palácio, Moisés poderia ter pensado que era só uns fogos de artifício da próxima festa de Faraó. No deserto, onde impera a monotonia de dias arrastados, vira um acontecimento único e espetacular.

O deserto pode ser um santuário. Quando Moisés se aproxima da sarça, Deus manda que ele tire as surradas sandálias de pastor de ovelhas e explica: “este lugar agora é terra santa”. Mas há alguns instantes não era. Era apenas um lugar onde ovelhas pastavam. Quando Deus se manifesta, a aridez do deserto vira um templo de glória, onde se tem que pisar com respeito e reverência. E pode ter certeza: se quando estamos nos palácios da vida não damos muita importância para isso, depois de quarenta anos no deserto, a gente se prostra com o rosto em terra e fica com medo até de levantar a cabeça, porque a experiência é indescritível, inesquecível e incomparável.

Posso confessar? Gostaria de dizer que desertos são desafiadores e atraentes. Gostaria de prometer que não há nada mais gostoso na vida do que viver anos a fio debaixo do sol implacável, longe da água fresca e do conforto, com uma umidade relativa do ar abaixo dos 20%. Gostaria de garantir que as noites, pelo menos, são curtas e amenas. Mas aí vem um frio desgraçado. Tem bicho perigoso, serpente, escorpião e feras. Desertos são terríveis e desesperadores. Desertos são o pior lugar do mundo para se viver. Ninguém tira férias no deserto, a não ser que consiga levar uma estrutura móvel que lhe permita enfrentar as adversas circunstâncias. Nossos amigos não nos visitam, nem telefonam nem mandam e-mail para lá. A coisa é tão complicada que a gente não fica sabendo de nada, nem quando nossos inimigos mortais morrem primeiro que nós, como foi o caso do Faraó que já não podia mais perseguir Moisés, porque já estava no sarcófago.

A questão é que do palácio saem bad-boys e do deserto saem grandes homens de Deus. Do palácio saem sucessores de Faraó e do deserto saem servos que podem conduzir o povo de Deus a grandes conquistas. Do palácio sai gente fazendo justiça com as próprias mãos e do deserto sai um homem com as tábuas da perfeita lei de Deus. O negócio, então, é pedir graça e misericórdia para que a gente consiga suportar o deserto da vida sem murmurar, sem desistir, sem xingar e sem escapar pelos fundos.

sábado, 30 de outubro de 2010

Passeio Socrático

por Frei Betto *

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz nos seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos dependurados em telefones celulares; mostravam-se preocupados, ansiosos e, na lanchonete, comiam mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, muitos demonstravam um apetite voraz. Aquilo me fez refletir: Qual dos dois modelos produz felicidade? O dos monges ou o dos executivos?

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: “Não foi à aula?” Ela respondeu: “Não; minha aula é à tarde”. Comemorei: “Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir um pouco mais”. “Não”, ela retrucou, “tenho tanta coisa de manhã…”. “Que tanta coisa?”, indaguei. “Aulas de inglês, balé, pintura, piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: “Que pena, a Daniela não disse: ‘Tenho aula de meditação!’”.

A sociedade na qual vivemos constrói super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas muitos são emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram que, agora, mais importante que o QI (Quociente Intelectual), é a IE (Inteligência Emocional). Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma próspera cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: “Como estava o defunto?”. “Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!” Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais…

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil – com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilidade coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!”. O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma su gestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globocolonizador, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade – a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas…

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno… Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer de uma cadeia transnacional de sanduíches saturados de gordura…

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Estou apenas fazendo um passeio socrático.” Diante de seus olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, que morreu no ano 399 antes de Cristo, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”

* Escritor e assessor de movimentos sociais

domingo, 24 de outubro de 2010

Viva a vida

por Mário Machado

A vida é um misto de coisas que não entendemos;
É o que somos, o que falamos o que fazemos.
É tudo isso e muito mais! Mistura de realidade e fantasia.
É um misto de tristezas, alegrias; se renova todo dia.

É um prenúncio de eternidade, pra uns, um buscar a tal felicidade.
Sou eu, é você, somos nós em todo canto, no campo, na cidade.
Fazendo hoje o dia de amanhã, construindo o futuro
Que nem sempre é uma ponte e sim um beco escuro, um muro.

A vida é um aprender viver, vivendo, sempre sendo,
Sorrindo, chorando, brincando, sofrendo.
É tanta coisa e quase nada! Um momento, uma estrada
Cheia de curvas e que acaba de repente numa brecada.

A vida é sempre complexa, porém, jamais desconexa e sem sentido.
É passageira, dirigida com firmeza por quem conhece o caminho
E sabe onde a estrada vai dar no final da história, do tempo.
A vida é como um veleiro, que rasga os mares, ao sabor do vento!

Veleiro livre, leve, solto, num mar ora calmo, ora revolto,
Porém, guiado por mãos experientes; bússola e leme firme; nunca solto.
A vida pode ser o que você quiser, ou, o que Deus planejou desde o começo.
Viver é basicamente fazer escolhas, lembrando-se que toda a escolha tem seu preço.

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Para ruminar vida afora:
"Então, formou Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente" Gênesis 2:7.

domingo, 17 de outubro de 2010

A oração, serve para alguma coisa?


por Harold Segura

A pergunta é capciosa, não há dúvida, mas válida se considerarmos que vivemos numa época onde impera o funcional e o pragmático. Hoje não há tempo para o incerto e o intangível. O mistério do divino foi ocultado por nosso racionalismo funcional. Por isso, nos perguntam: Por que crer no céu como solução para os enormes problemas da terra? Não haverá meios mais eficazes e decisivos para acabar com as situações indignas do ser humano? Em outras palavras: Podemos orar e estar seguros de que serve para alguma coisa?

Estas são inquietações honestas que surgem, sobretudo, ao se olhar a realidade angustiante de nosso mundo. A fome, a pobreza, a corrupção, a violência e a exclusão social, entre outros problemas, nos desesperam e nos conduzem a buscar soluções práticas, nas quais não se concede lugar algum à oração. Este ceticismo se percebe, inclusive, frequentemente entre cristãos que trabalham a favor da transformação humana e do bem-estar integral dos demais. Um ceticismo que, em alguns casos, transforma a fé em ativismo e a esperança em messianismo humano.

A vida e os ensinamentos de Jesus nos recordam da centralidade da oração. Para ele, a oração era a forma de se manter em contato permanente com o Pai, de submeter-se ao escrutínio de Sua vontade e de receber a inspiração para continuar anunciando e tornando presente a realidade do Reino de Deus e da sua justiça. Jesus orava em privado, em público e muitas vezes se unia a seus discípulos para praticar a oração comunitária. Sempre cuidou para não cair nos riscos da oração ritualista, carente de sentido e ação, como era a oração dos religiosos do seu tempo. Lembrou aos fariseus de que suas longas orações não serviam para nada — eram apenas uma desculpa a mais para sua religiosidade carente de justiça e misericórdia para com o próximo.

Mas, serve para alguma coisa? Não serve de nada quando se desliga do compromisso cotidiano com a causa do Reino de Deus e quando se divorcia da vida e da história. Não é cristã a devoção que se separa da ética. Kant, o célebre filósofo alemão, já assinalava que o ser humano se eximia de atuar moralmente orando. Por isso, a oração era, para ele, literalmente mera estupidez.

A oração de nada serve, sejamos sinceros, quando paralisa as ações e justifica a falta de compromissos. De nada serve quando aliena a existência e serve como desculpa para a injustiça. A isso se referia Jesus quando disse: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações... (Mateus 23:14). Suas orações, ainda que longas e eloquentes, não eram mais que palavrórios mal intencionados para ocultar o despojo. Daí, a dureza com que Jesus as condenou.

Mas serve para muita coisa, e parece crucial, quando vai unida à ação e quando se integra na totalidade de nossa vida cristã; quando é súplica sincera que busca conhecer a vontade do Pai e quando conduz ao compromisso efetivo com essa vontade revelada. Jesus orava: “…contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres” (Mateus 26:39).

Desse modo, devemos ressaltar o binômio oração-ação para que nossas orações não fiquem na retórica litúrgica mas que conduzam ao cumprimento da vontade de Deus no mundo. Mas para que nossas ações, por mais esforçadas e nobres que sejam, também não se convertam em ativismo insignificante, onde Deus — o “totalmente outro” — fique ausente e eliminemos assim a possibilidade do sentido de nosso compromisso como cristãos. Orar e não agir é tão errado como agir sem orar.

Oração e ação são um casal que não deveríamos divorciar; para que nossas orações sirvam para alguma coisa e para que nossas ações levem a algum lugar. A chave volta a estar na velha regra monástica Ora et labora, como ensinava São Bento.
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Harold Segura é teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã (Encontro Publicações, 2007) e de Para que Serve a Espiritualidade? (Ultimato, 2010).

domingo, 10 de outubro de 2010

Cristianismo e Política

Por Artur Gueiros

O Evangelho, o senhorio de Cristo, se espraia por todos os aspectos de nossas vidas. Tudo pode e deve ser utilizado pelo cristão como instrumento de graça, como materialização do amor: um sorriso, um email, um olhar, um blog, um livro, um tweet, um abraço, um olá e, da mesma forma, a política. Ela nada mais é do que a ferramenta na qual as relações de poder se estabelecem; não se restringe a voto, candidatos, congresso etc, mas abrange o nosso dia-a-dia, nossas decisões, nossos posicionamentos.

O partido de Cristo é o Reino, seus valores são o parâmetro, e o objetivo final é a glória de Deus. Num estado democrático, a política é o instrumento pelo qual se dão as maiores e mais abrangentes transformações para o país. Toda e qualquer demanda ou pressão exercida pelos diversos atores sociais tem, necessariamente, que desembocar na política institucional para que tome forma legal atingindo, assim, todos os cidadãos. Como servos do Altíssimo, deveríamos buscar desenvolver um maior interesse pela política, explorar seu potencial como instrumento de transformação da realidade, refletindo os valores de Deus na sociedade.

A política deve ser cuidada pelos cristãos, aperfeiçoada, bem utilizada, e não, desdenhada. O fato de candidatos e partidos caírem em erro, não deveria nos surpreender; não temos nenhuma ilusão quanto ao estado de total depravação do homem e à luta contínua contra o pecado que tenazmente nos assedia. Pelo contrário, nossa relação com Deus - ao expor nossas fraquezas - nos impulsiona a aperfeiçoar a política, de maneira a dificultar que a ganância, a vaidade e o egoísmo humanos tenham espaço nas estruturas econômicas e sociais, gerando fome, miséria e dor. Nosso relacionamento com o Pai deve nos mover para políticas públicas que corrijam a vil miséria que insulta os céus, caso contrário, as pedras continuarão clamando, e o Senhor continuará usando ímpios para realizar a tarefa que nos foi endereçada. Multipliquemos, pois, o talento que nos foi confiado. Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste; E, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros. Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado. Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes.Mt 25:24-30.

Preocupamos-nos mais com as conseqüências: aborto e homossexualismo, do que com as causas - objetização da mulher na mídia, abuso sexual de crianças, tráfico de seres humanos, qualidade dos programas de TV, desigualdade e opressão no campo e na cidade, exploração no trabalho, impostos injustos, juros bancários extorsivos, destruição da natureza. Enquanto Corpo de Cristo, temos que ser a materialização do amor de Deus na sociedade que nos cerca (na qual deveríamos estar inseridos), mostrando através das boas obras - “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” -, que Deus se importa e que tem um plano melhor para o mundo. O Eterno exige que identifiquemos o mal (Informa-se o justo da causa dos pobres, mas o perverso de nada disso quer saber. Pv. 29:7) e o combatamos, onde quer que se manifeste, pois praticar a justiça é alegria para o justo, mas espanto, para os que praticam a iniquidade. Pv 21:15.

Aborrecer o mal e colocar-se como prumo na construção de uma sociedade mais justa (Ai dos que decretam leis injustas, dos que escrevem leis de opressão, para negarem justiça aos pobres, para arrebatarem o direito aos aflitos... Is 10:1,2.) e mais amorosa (O lobo habitará com o cordeiro,...; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará. Is 11:6) é um papel do qual não podemos nos furtar, e para o qual precisamos cultivar senso crítico e discernimento, fundamentais para a compreensão e a prática do Evangelho. A falta deles costuma gerar uma fé supersticiosa, cheia de medo, de dogmas e de autoritarismo, distinta da fé dinâmica vivida e pregada pelos reformadores (Ecclesia reformata semper reformanda).

Quando a igreja não tem discernimento histórico do seu papel, do que se passa no mundo, das correlações de força, das relações de causa e conseqüência, quando falta profecia (Pv 29:18), ela se afasta do pleno testemunho de Cristo. A Palavra e a história mostram que nem sempre a presença da igreja indica a presença de Jesus. Os tristes exemplos das igrejas segregacionistas no sul dos EUA e na África do Sul, bem como as igrejas que apoiaram e deram suporte aos golpes militares na América do sul revelam isto. Se temos hoje dificuldade em entender nosso papel e compromisso diante da injusta realidade brasileira, a resposta se encontra em parte na nossa própria história eclesial, que sepultou, a duros golpes, o pensamento crítico e a reflexão, fazendo com que os erros do passado se tornassem os dogmas que engessam a compreensão e transformação do presente. Cabe-nos trazê-los (crítica e reflexão) à vida novamente, para que o Senhor nos guie pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Pois em Cristo, um outro mundo é possível.
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Artur Leonardo Gueiros Barbosa
http://twitter.com/arturgueiros

domingo, 3 de outubro de 2010

Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil

por Paulo Nascimento

Ele era um homem simples. Não teve muita escolaridade. Era um apaixonado pela política e foi vereador em sua cidade por cinco mandatos consecutivos. Chegou também a ser prefeito interino em três ocasiões. Homem de grande popularidade e de intensa atividade política. Foram essas características que marcaram o seu nome na história de sua pequena cidade.

O que pouca gente sabe por lá é que ele também era poeta prolixo. Melhor dizendo, ninguém além de seus próprios filhos sabe disso. Escreveu muito e com uma caligrafia de colocar inveja em qualquer escrivão. Livros publicados? Até que poderia ser, se um dos seus “filhos geniais” não tivesse dado um fim desconhecido para os seus manuscritos. Nada, absolutamente nada ficou para a memória após sua morte. Só ficou uma sensação de algo entalado na garganta. A vontade de saber como seriam aquelas poesias que ninguém conhecia.

De quem estou falando? Do meu avô! Político-poeta, cujo legado literário foi privado da família por um tio meu, que cometeu a insensatez de destruir (não se sabe por que) os manuscritos do meu avô.

Coisa semelhante pode ter acontecido com Paulo de Tarso, no que diz respeito a uma certa carta que teria sido endereçada aos cristãos de Laodicéia (Cl 4,16). Que carta era aquela que teria sido lida entre os cristãos de Laodicéia, e que deveria ter sido lida entre os colossenses também? Li comentários que dizem ser a mesma carta aos Efésios. De onde vem essa certeza? Será que suposições como essa refletem o medo de admitir que existem (se é que ainda existem) textos inspirados fora do nosso Novo Testamento canônico? Se essa carta fosse achada pelas pesquisas arqueológicas, entre os escritos do Mar Morto em 1947, suponhamos, ela seria incluída entre os escritos sagrados da Bíblia cristã? São tantas as dúvidas. Mas a principal delas é idêntica ao caso do meu avô: qual o conteúdo dos manuscritos? Quais as recomendações do apóstolo nesse outro escrito?

Entre Paulo e meu avô, o apóstolo deu mais sorte. Alguns dos seus escritos estão ainda entre nós. No caso do meu avô, seus escritos transformaram-se na pior classe de enigmas: os indecifráveis. Nunca saberemos por quais céus voou a imaginação do meu avô; se ele privilegiou os pássaros ou os montes; ou se ele preferiu os sentimentos humanos. Dor sem consolo, dor de morte.

Eu ia falando de imaginação, que é coisa fantástica. Foi com ela que Martin Luther King Jr., aquele notável pastor batista norte-americano pensou em como seria uma carta paulina aos cristãos da América. Ele foi na contramão da carta de Paulo aos laodicenses e dos poemas do meu avô. Esses escritos existiram, mas nenhum de nós os conheceu. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca existiu, mas alguns de nós a conhecemos. A epístola “paulina” é de conteúdo tão interessante e contextualizado que eu resolvi, ao invés de comentá-la, transcrever ipsis verbis (ao pé da letra) alguns dos seus tópicos principais. Veja o que para Martin Luther King Jr. teria sido uma carta do apóstolo Paulo aos cristãos dos Estados Unidos, em meados dos anos 60:

Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado ao apostolado pela vontade de Deus, a todos os que estais na América, convosco a graça e a paz da parte de Deus Nosso Senhor e de Jesus Cristo. [...]

Contaram-me das maravilhosas e extraordinárias descobertas que haveis feito no campo científico e nas vossas espantosas realizações tanto na terra como no ar. O vosso gênio científico conseguiu encurtar distâncias e pôr o tempo a ferros. Tornastes possível ir almoçar em Paris, na França, e vir jantar em Nova Iorque, na América.

Também me falaram dos vossos imponentes ‘arranha-céus’, cujas alturas prodigiosas se projetam no espaço; nos avanços da medicina e nos remédios que curam tantas doenças gravíssimas, prolongando assim as vossas vidas e proporcionando-vos uma maior segurança e um maior bem-estar físico.

Tudo isso é maravilhoso. [...] Mas, América, parece-me que o vosso progresso moral e espiritual não terá acompanhado o científico. [...] Conseguistes, através do vosso progresso científico, tornar o mundo próximo, mas falhastes no aproveitamento do vosso gênio moral e espiritual para dele fazerdes uma fraternidade. [...] Rogo-vos, pois, que coloqueis o vosso progresso moral à frente do científico. [...]

Vejo que muitos cristãos na América dão primordial importância aos sistemas e costumes criados pelo homem. Temem ser considerados diferentes; a sua maior preocupação é serem socialmente aceitos. [...] Numa época em que homens procuram destruir os altos valores da fé, vós deveis agarrar-vos a esses mesmos valores e, a despeito da pressão contrária exercida pela geração presente, preservá-los para as gerações futuras.

Deveis desafiar com energia os erros dos costumes, defender as causas desfavorecidas e lutar contra o status quo. [...] Sei que adotastes na América um sistema chamado capitalismo, que vos têm permitido realizar maravilhas; tornaste-vos na mais rica nação do mundo e edificastes o maior organismo de produção de toda história. [...] Dizem que mais de 40% da riqueza nacional está nas mãos dum décimo de 1% da população. [...] Se quereis ser uma autêntica nação cristã, tendes de solucionar este problema! [...] Utilizai os vossos vastos recursos econômicos na abolição da miséria no mundo. Não é vontade de Deus que alguns vivam na riqueza supérflua e ostensiva, enquanto outros apenas conhecem a mais negra miséria. [...]

Disseram-me que existem dentro do Protestantismo americano mais de duzentas e cinquenta denominações diferentes. Não é positivamente nessa multiplicidade que reside o drama, mas no fato de muitos dos grupos se proclamarem detentores da verdade absoluta. Um tão limitado sectarismo destrói a unidade do Corpo de Cristo. Deus não é batista, metodista, presbiteriano ou episcopal; Deus transcende as nossas discriminações. Se vós, América, quereis ser testemunha autêntica de Cristo, fazei por compreender aquilo que vos digo.

Sinto-me feliz por saber que há na América um interesse cada vez maior pela unidade da Igreja e pelo Ecumenismo. [...] Também tive animadoras notícias sobre diálogos recentes entre Católicos Romanos e os Protestantes. [...] Espero que [isso] represente o início dum movimento para uma união cada vez maior entre todos os cristãos. [...]

Outra coisa que me perturba na igreja americana é nela poder existir a divisão entre brancos e pretos. Como é possível a segregação no autêntico corpo de Cristo? Parece até, segundo me dizem, que é maior a integração na sociedade mundana e noutras atividades seculares, do que na Igreja cristã. Como isto é horrível! Julgo que há entre vós cristãos que tentam descobrir fundamentos bíblicos para justificar a segregação e provar que o negro é, por natureza, inferior ao branco. Ora, tal idéia é blasfema e contrária a tudo o que a religião cristã afirma. Repito o que já disse antes a muitos outros cristãos: em Cristo “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher pois todos vós sois um em Jesus Cristo”. [...] Exorto-vos, pois, a libertar-vos de qualquer espécie de segregação. [...] Nunca vos deixeis rebaixar tanto por alguém, que sejais obrigados a odiá-lo. [...]

A finalidade da vida não é ser feliz nem procurar o prazer e fugir ao sofrimento mas, venha o que vier, cumprir sempre a vontade de Deus. [...]

Podeis ter o dom da predição científica ou o profundo conhecimento do comportamento das moléculas; podeis penetrar o interior da natureza e lá adquirir novos e enormes conhecimentos; podeis ascender aos mais altos cargos acadêmicos; possuir toda a ciência, vangloriar-vos dos vossos grandes estabelecimentos de ensino e da vastidão ilimitada dos vossos cursos; quando, porém, vos falte o amor, nada disso vos aproveitará. [...]

Digo-vos adeus. Saudai calorosamente a todos os santos ao serviço de Cristo. Confortai os outros; conservai um mesmo espírito; vivei em paz. [...] A Deus seja dada honra e glória por todos os séculos dos séculos. Amém.
Como você deve ter notado, eu retalhei a epístola no esforço de transcrever apenas os tópicos básicos que a compõe. Ela é bem maior que isso, e bem mais detalhada. Todavia, lhe dou minha palavra de que evitei todo tendencionismo no momento de separar os trechos. Se você preferir conferir por si mesmo(a), leia daquele autor Strength to love – em português Força para amar (Editora Tapir) –, já que é nesse livro que se encontra a versão na íntegra da Carta de São Paulo aos cristãos da América. Infelizmente, Martin Luther King Jr. foi tirado desse mundo pelos poderes que desejam perpetuar o status quo. Meu desejo sincero é que ele ainda estivesse vivo e viesse passar uma temporada aqui no Brasil. Quem sabe ele usaria mais uma vez da sua admirável imaginação e escreveria uma Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil?!

Não obstante, voltaram-me à cabeça as poesias do meu avô e a carta de Paulo à igreja de Laodicéia. Elas existiram um dia, mas nós nunca as conheceremos. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca foi escrita por Paulo, mas nós agora a conhecemos pela imaginação de um pastor preocupado com um cristianismo mais relevante. A Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil também nunca existiu, mas a nossa imaginação, aliada à nossa sensibilidade e vontade de um cristianismo mais original, isto é, mais “apegado às origens”, pode imaginar como seria essa epístola. Então, agora é hora de fazer silêncio e começar a pensar...

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Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.

sábado, 25 de setembro de 2010

A esperança vence a desilusão


por Ricardo Barbosa de Souza

Mesmo que as notícias piorem cada dia, eu ainda continuarei a ter a esperança de um dia ver este país ser governado por gente decente

Às vezes, me vem uma vontade enorme de chutar o balde! Penso em desistir, parar de lutar por um país melhor, sonhar com políticos altruístas, abnegados, que ajam como verdadeiros sacerdotes da nação. Minha vontade é de anular meus votos nas próximas eleições, pois ninguém os merece. Parece que o melhor, o mais sensato, é viver alienado, como muitos; não dar a mínima para a política, ignorar o país e cuidar da minha vida.

Confesso que diante de situações como as que estamos vivendo, tudo isso me passa pela mente. Manter a esperança quando a gente se sente traído é como querer permanecer de pé com as pernas quebradas. Por mais que nos esforcemos, não dá – não há mais nada em que se apoiar. Então, sem a utopia que nos motiva, jogamos a toalha e nos entregamos ao cinismo, aquela descrença que toma conta da alma e nos rouba os sonhos mais nobres.

Tais sentimentos passam por mim e chegam a me fazer considerar que este é, provavelmente, o melhor caminho. Mas, em algum momento, parece que enfrentam uma espécie de resistência interna. Eles não chegam a corromper totalmente meu coração e minha mente; lentamente, volto a me recompor e a reconsiderar a fonte dos meus sonhos e esperanças. Vejo então que elas não podem se sustentar num alicerce tão frágil e efêmero como o das ambições insanas pelo poder.

O apóstolo Paulo, ao referir-se à fé de Abraão, disse que o patriarca “esperava contra a esperança”. Abraão cria numa promessa que, embora teoricamente impossível, lhe fora feita por Deus. As chances de acontecer aquilo que o Senhor lhe havia prometido eram mínimas – para dizer a verdade, nenhuma; mas ele creu, e sua fé lhe encheu de esperança. E o que dizer de Habacuque, um profeta de Deus preocupado com seu país e o futuro de sua gente? Aflito, ele perguntou a Deus: “Até quando, Senhor, terei que conviver com a injustiça e opressão?” A princípio, qualquer um esperaria uma intervenção divina eliminando a iniqüidade e trazendo de volta a retidão. No entanto, a resposta de Deus surpreende o profeta: os conflitos, ao invés de diminuírem, iriam aumentar. Ele, sem entender, prefere calar-se e permanecer atento ao que Deus iria fazer.

Habacuque nos dá uma das lições mais preciosas sobre esperança. Diante da devastação, da corrupção, da injustiça e do sofrimento, ele não a perdeu. Na sua oração, o profeta diz: “Mesmo não florescendo a figueira, e não havendo uvas nas videiras; mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos; ainda assim, eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação. O Senhor, o soberano, é a minha força; ele faz os meus pés como os do cervo; faz-me andar em lugares altos.”

De onde Abraão e Habacuque tiraram sua confiança? Os fatos que presenciaram conspiravam contra qualquer esperança. Abraão não tinha motivos para acreditar que, em sua velhice, pudesse ainda ter filhos. Parecia coisa de lunático, projeção da sua carência. Da mesma forma foi com Habacuque. Esperar o quê? O exército dos caldeus estava marchando sobre sua terra. Anunciava-se uma devastação total, uma crise sem precedentes. No entanto, ambos creram na ação misteriosa e soberana de Deus.

O apóstolo Paulo afirma que permanecia sempre disposto, cheio de esperança e trabalhando arduamente porque, mesmo que seu homem exterior – presenciando as circunstâncias políticas e sociais, a falência dos projetos humanos ou as limitações da ciência – sofresse os golpes fatais da desilusão, seu homem interior, aquele lugar onde a fé nutre a esperança, ia se renovando dia após dia. A crise moral, política e ética que vivemos hoje serve de alerta para nos fazer ver de onde temos alimentado a esperança. O slogan da campanha vitoriosa do presidente Lula dizia que “A esperança venceu o medo” e encheu muita gente de ânimo, Mas hoje, o medo e a desilusão rondam de novo a esperança. Olhamos para o futuro e não enxergamos nada; as possibilidades de mudança evaporaram. Na melhor das hipóteses, quem sabe, poderemos sonhar com um governo que seja mais esperto, que esconda melhor as tramas do poder, os caixas dois e os favores políticos. Talvez poderemos também sonhar com uma reforma política, destas para inglês ver, que servirá apenas para, mais uma vez, iludir eleitores sonhadores.

Mas a esperança é nutrida pela fé, e não fé em um partido, um político com discurso moralista, religioso ou ideológico. Nossa esperança, hoje e sempre, é sustentada pela Palavra de Deus, pela certeza de que o Senhor reina e que conduz todos as coisas para o fim que ele mesmo determinou. É por causa dele e do seu Reino que continuamos a lutar incansavelmente até que haja justiça. É por causa da fé que podemos dizer como Habacuque – ainda que o poder continue corrompendo os mais nobres ideais; ainda que a maioria dos políticos não mereçam nossa confiança; ainda que malas de mensalões continuem circulando nos corredores do poder; ainda que a mentira permaneça na boca daqueles que juraram dizer só a verdade; mesmo assim, eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação.

Não pretendo chutar o balde, muito menos me juntar aos alienados. Mesmo que as notícias piorem cada dia e o mercado dê sinais de agitação e intranqüilidade, ou ainda que aqueles em quem um dia eu confiei me decepcionem e os sonhos que um dia acalentei se frustrem, eu ainda continuarei a sonhar e ter a esperança de um dia ver este país ser governado por gente decente. Líderes que sejam servos do povo, que aspirem ao sacerdócio e não ao poder, que lavam os pés uns dos outros e não se curvam diante daqueles que oprimem e amam a iniqüidade e não a justiça. Continuo tendo esta esperança porque sei em quem tenho crido, e sei que somente nele minha esperança repousa.

Ricardo Barbosa de Souza
é conferencista e pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasilia

domingo, 19 de setembro de 2010

"Antes, cuida da tua casa e de ti mesmo"

por Karla Muniz Barreto Oton

Falar sobre o cuidar é, sobretudo fazer uma reflexão do lugar onde se mora, onde se constrói as relações mais íntimas e complexas do ser, onde se recebe os primeiros cuidados - a família.

A família é ainda o lugar onde se constrói identidades, estruturas emocionais, vínculos eternos. É onde podemos tocar, preocupar-se e envolver-se afetivamente, um compromisso emocional que acarreta responsabilidade prazerosa, espontânea e plena. Quem foi cuidado nesses termos geralmente cuidará de outros, dando continuidade nesse processo consigo mesmo em sua caminhada.

A palavra cuidado segundo os clássicos de filologia deriva do latim cura, que se escrevia coera e era usada em condições de amor e de amizade. Expressava, portanto uma atitude de cuidado, preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou objeto de estimação. Esse cuidado existe apenas quando se atribui valor e importância. É o aconchego da alma, o mimo que se precisa para olhar para si e para o outro com ternura.

Cuidar é um princípio que deve norteiar a vida, que marca pessoas, que traz esperança. Rollo May falando acerca do cuidado disse que somente ele nos permitiria resistir ao cinismo e à apatia que nos cercam hoje. Estamos vivenciando situações onde é "cada um por si e Deus por todos", na família cada um possui sua TV, seu PC, sua denominação; na igreja, os relacionamentos se limitam ao momento do culto; no trabalho se mantém uma postura individualista, devido a competição; em todos os setores a sociedade vive uma superficialidade assustadora que desumaniza e embrutece as relações.

Se olharmos para os ensinamentos do Senhor Jesus, podemos perceber que Seu cuidado foi muito além, excedeu a si próprio, a sua família e aos seus discípulos, estendeu-se à aqueles que eram desprezados, aos enfermos, aos excluídos, para aqueles que não tinham ninguém a ouvir seus gemidos, ou alguém para estender a mão e colocá-los em um tanque para serem curados; muitas vezes seus discípulos apesar de andarem com Ele, eram ainda indiferentes e insensíveis as necessidades do próximo; repreenderam pessoas como aquele homem que gritava: "Jesus filho de Davi tem misericórdia de mim", eles não compreendiam que a misericórdia(cuidado) do Mestre excedia aos preconceitos, tabus, legalismos, superficialidades, descaso e até mesmo a lei. Leonardo Boff enfatiza que Jesus fez da misericórdia a sua ética.

Madre Teresa ao deixar o convento para cuidar dos mais pobres dos pobres disse: "Dá Cristo ao mundo, não o mantenhas para si e ao fazê-lo, usa tuas mãos", "a mão que toca cura porque leva amor, carinho, afeto, devolve a confiança, oferece acolhida e manifesta cuidado, renascendo a humanidade perdida".

Amar ao próximo como a si mesmo, é cuidar de si, é deixar-se ser cuidado, é dar acesso ao Espírito de Deus e ao próximo para tocar em feridas ainda não cicatrizadas, como debilidades, pecados, tendências, medos, segredos; nesse exercício de humildade as traves do nosso olho já tão insensível começam a ser retiradas, para só então nos vermos e vivermos em plenitude, e assim retirar o argueiro daqueles que nos cercam, cuidando com-paixão para que vejam plenamente o Mestre do Amor. Lembramos-nos ainda que Jesus veio para os doentes, portanto somente estes serão por Ele cuidados para assim cuidarem plenamente da sua casa.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Bem-aventurados os que choram


por Israel Belo de Azevedo

Embora o gênero predileto da Bíblia seja a poesia, plena de figuras de linguagem e de imagem, seus textos são sobre a vida concreta, para situações concretas. Ela está cheia de narrativas de pessoas, homens e mulheres, que choraram diante de certas situações na vida, como também ocorre conosco.

Chorar é um desses verbos que acompanham o ser humano (Eclesiastes 3:4). Quando chegamos à luz do mundo, choramos, aos berros. Quando perdemos pessoas que nos enlutam com sua partida, choramos, com intensidade. Nascimento e morte têm o choro como seu fundo musical.

Tão presente é o choro que, às vezes, lançamos mão dele conscientemente para atrair a piedade ou até para vender uma falsa impressão a nosso respeito. Nas CPIs recentes, vimos políticos e empresários jurar inocência inexistente em meio a lágrimas tão copiosas que tiveram de interromper por instantes seus depoimentos. É como se o choro autenticasse a inocência. É o choro estratégico, para enganar, como o de Dalila quando pediu a Sansão que lhe revelasse seu segredo (Juízes 14:16).

Quando Jesus profere as Suas bênçãos no chamado Sermão do Monte, ele inclui os que choram, mas os que choram por reconhecer as suas limitações e por desejar o consolo que vem de Deus.

• Bem-aventurados os que choram de luto, por terem perdido pessoas queridas, tragadas pela morte, que é sempre brutal e deixa sempre um vazio sem fim, como os que ficam também estivessem morrendo aos poucos. Chorar a morte de uma pessoa querida (João 11:35) é um tesouro que nenhum humano pode abandonar, em nome de qualquer disposição, chamada de compostura, coragem ou o conformação.

• Bem-aventurados os que choram de saudade, porque distanciados dos seus queridos, afastados para longe, voluntária ou involuntariamente, como se também estivessem junto aos rios da Babilônia, sentados e chorando de saudade de Sião (Salmos 137:1).

• Bem-aventurados os que choram porque perderam coisas importantes, como aqueles que ficaram sem suas casas por causa de tempestades da natureza ou foram privados de seus automóveis em acidentes ou tiveram levados bens valiosos em assaltos.

• Bem-aventurados os que choram por causa da dor que corta seus corpos ou mentes ou mentes ou corpos de seus queridos. Há diagnósticos que fazem chorar. Há cirurgias que fazem chorar. Há tratamentos que fazem chorar. Há sofrimentos para os quais não há terapia alguma, a não ser a do choro. Há leitos de hospitais que parecem eternos. Há doenças que prenunciam o fim. Há doenças que produzem a sombra da morte, como foi o caso de Ezequias, que contraiu uma doença letal (Isaías 38:3).

• Bem-aventurados os que choram por não recuperarem o perdido encanto pela vida. As lutas vão drenando as energias, deixando a lágrima em seu lugar. As decepções vão minando a vontade de viver, deixando o choro como mergulho possível. As perdas acumuladas vão alimentando a tristeza ou a depressão. Não há tempo para o sorriso, só para o lamento (Salmos 6).

• Bem-aventurados os que choram por experimentarem a tragédia da rejeição, do esquecimento, da ingratidão ou do abuso. Há pessoas que sofrem e choram por não serem amadas, como todo ser humano deve. Há pessoas que sofrem e choram por não se sentirem amadas pelos outros. Há pessoas que não conseguem imaginar um Deus que as ame. Há pessoas que vivem como que esquecidas num depósito de corpos. Para essas pessoas, a única manifestação que lhe é permitida é o choro, muitas vezes silencioso.

• Bem-aventurados os que choram porque estão sendo perseguidos por causa da sua fé ou por causa das conseqüências da sua fé. Crer é um verbo que se conjuga na contramão. Quem faz o trabalho do Senhor, às vezes, se esquece que sua atuação pode ser molhada pelas lágrimas. Bem-aventurados os que choram por fazerem o trabalho do Senhor, mesmo que em meio a lágrimas do sacrifício provocado pelo peso do trabalho ou pela incompreensão daqueles que recebem os benefícios do que se faz (Salmos 126:5-6).

• Bem-aventurados os que choram de indignação contra toda forma de injustiça, miséria e violência. Quem está acostumado a aceitar o fruto do pecado como aceitável não chora. Bem-aventurados os que choram quando a espada da fome, da sede, da insegurança é fincada no corpo de um fraco, seja parente, amigo ou desconhecido. Benditos os que choram de indignação.

• Bem-aventurados os que choram por não conseguirem dar o passo ou os passos que precisam para uma recuperação, para a restauração da imagem de Deus em seus corpos e almas.

• Bem-aventurados os que choram arrependidos do seu pecado. Como diz uma antiga canção, o chorar não salva; de igual modo, apenas sentir-se indigno não salva, mas o arrependimento é o primeiro passo para a salvação. Quando pecamos, precisamos chorar arrependidos, como Davi, após o adultério com Batseba.

domingo, 5 de setembro de 2010

A ressurreição do respeito

por Ariovaldo Ramos

“A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi” Gênesis 3.12.

Deus colocou o casal humano no jardim (Gn 2.8), estavam nus e não se envergonhavam (Gn 2.25), olhavam-se um como extensão do outro, não havia nenhum tipo de constrangimento entre eles.

Entendo que a ausência de constrangimento demonstrava a unidade deles. Um se via no outro. Havia entre eles um profundo respeito, uma vez que a convivência era harmoniosa. O que só é conseguido quando há respeito.

Respeito é mais do que não beligerância, trégua ou tratar alguém de maneira educada, polida. É profunda consideração pelo outro. Pessoas que se respeitam, honram-se mutuamente ou, no dizer de Paulo: “sujeitam-se um ao outro” (Ef 5.21). O respeito dignifica e enobrece qualquer relacionamento, assim como a sua ausência o vulgariza e empobrece.

A frase em epígrafe, dita pelo homem em seu relatório a Deus, atesta que a primeira conseqüência da queda, para o relacionamento humano, foi a perda de respeito entre homem e mulher. Quem respeita não usa o outro como bode expiatório para os seus problemas. Lamentavelmente, não só foi a primeira conseqüência, como, a julgar pela realidade da sociedade em que vivemos, tornou-se o padrão da maioria dos casamentos ora observados.

Curiosamente, a falta de respeito não inviabiliza, à primeira vista, um relacionamento, isto é, duas pessoas podem continuar juntas ainda que não se respeitem. A qualidade do relacionamento será, no mínimo, sofrível, porém, ainda possível.

O desrespeito pode assumir várias formas, das mais sutis às mais agressivas. Não é incomum, por exemplo, casamentos que se mantêm por décadas sob um conflito constante, que pode, inclusive, envolver maus tratos físicos.

A forma mais sutil de desrespeito é a dos ataques verbais, que podem ir de irritantes a grosseiros. Irritantes são os ataques verbais que denotam que o casal esta sempre se provocando ou, às vezes, praticando um duelo intelectual ou emocional, onde cada palavra é vista como o desferir de um ataque que merece imediata retaliação. Já os ataques grosseiros se caracterizam pela simples vulgaridade e pela violência verbal.

Ainda que pareça haver seres humanos que nutrem uma forma mórbida de amor, entendo que o desrespeito não pode grassar num ambiente de verdadeiro amor. Onde há falta de respeito o amor já foi embora ou, no mínimo, está em estado convalescente. O apóstolo Paulo disse: “o amor não se conduz incovenientemente” (1Cor 13.5), ou seja, o amor não falta com o respeito.

A falta de respeito é conseqüência do desprezo pelo outro, que, por sua vez, decorre da falsa conclusão, por parte do desrespeitoso, de que, de alguma forma, lhe é superior. Essa falsa ilação pode advir das mais diversas situações: despreza-se perdedores, gente que não conseguiu vencer na vida, um marido que não conseguiu ser o provedor da casa; despreza-se pecadores, gente que traiu o cônjuge - muitas vezes o traidor até é perdoado, pelo menos aparentemente, mas, com o tempo, acaba-se por perceber que o perdão foi apenas uma forma doentia de manter a pessoa sob tortura emocional – há relacionamentos que são mantidos por mera vingança; despreza-se gente que não acompanhou a evolução intelectual, financeira ou emocional do cônjuge; despreza-se gente que perdeu-se no padrão estético, marca dessa sociedade cultora do corpo. Ainda que as raízes do desprezo pareçam ser múltiplas, penso que há uma causa anterior.

A queda do homem é descrita como resultado de um ato de desobediência, o ser humano caiu por comer da fruta que Deus lhe proibira comer, a fruta que lhe daria conhecimento do bem e do mal. Não que o homem desconhecesse a diferença entre o bem e o mal! A criatura bem o sabia; se alguém, no Éden, perguntasse ao primeiro casal o que era e o que não era permitido fazer, isto é, a diferença entre o bem e o mal, certamente, receberia como resposta algo assim: “é permitido comer de todas as frutas (o bem) exceto da fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal (o mal).” Acontece, porém, que o conhecimento que nossos primeiros pais tinham do bem e do mal vinha de Deus, isto é, era o Criador quem determinava o que era bem e o que era mal. O que foi oferecido ao casal original foi a possibilidade de, cada um deles, tornar-se a sua própria referência de bem e de mal, livrando-se assim, aparentemente, da exclusividade hegemônica de Deus.

Ao aceitar a oferta, a humanidade não só perdeu a comunhão com Deus, fonte de eterna sabedoria, como inaugurou um estado de guerra: cada ser humano, ao se tornar sua própria referência de bem e de mal, decretou guerra ao próximo, uma vez que o que um chama de bem o outro pode muito bem chamar de mal. Não bastasse isto, cada pessoa, não contente em ser a sua própria referência de bem e de mal, quer universalizar-se como referência. Eis a gênese da beligerância, a começar pela família: cada qual quer impor a sua vontade, o seu padrão, logo, está deflagrada a guerra. O primeiro ato de guerra é o desrespeito.

Para debelarmos este estado de desrespeito temos de nos converter ao Senhor, de modo que Ele volte a ser a única referência de bem e de mal para nós, assim como temos de nos converter um ao outro, de maneira que retomemos o caminho para a unidade. O converter-se ao Senhor faz com que a Sua vontade e o seu “modus operandi” se tornem nossos paradigmas, dessa forma nosso perdão será real, nossa paciência com o tempo de amadurecimento do outro será plena e nosso amor incondicional. O converter-se um ao outro faz com que a paz com o cônjuge ou com o próximo se torne prioritária, se torne o juiz de todas as nossas decisões, de modo que não ousemos dizer ou fazer qualquer coisa que tolde o relacionamento. O resultado de tal conversão é o restabelecimento de um estado de mútuo respeito.

sábado, 28 de agosto de 2010

A Síndrome do marido maravilhoso

por Isabelle Ludovico da Silva

Foi este título de um artigo do psicólogo Alberto Lima, publicado há muitos anos, que chamou minha atenção sobre esta realidade. Tenho em mente um desabafo de uma amiga, esposa de um pastor de renome: "Demorei muitos anos para descobrir que eu não era apenas a sombra dele, mas que tinha luz própria!". Lembro de outra amiga, casada com um artista famoso, que luta até hoje para sobreviver ao lado de um ego tão inflado. O que dizer do provérbio popular: "Atrás de todo grande homem, existe uma grande mulher!". De fato, parece que muitos homens desenvolvem um brilho tão ofuscante que não sobra lugar ao seu lado, apenas papéis subalternos de bajuladores e serviçais. São pessoas empreendedoras, carismáticas, sedutoras que conseguem arrebanhar admiradores e vão aos poucos desenvolvendo um personagem idealizado que enfatiza as qualidades e camufla as fraquezas. Assim como, no mito de Narciso, a ninfa Eco é condenada a repetir "maravilhoso, maravilhoso!", este homem não aceita críticas e questionamentos.
Mas o seu sucesso na vida pública não se sustenta na vida privada, na intimidade do lar. Este homem educado, sociável, inteligente, brilhante, reserva suas atenções para as pessoas que o admiram. Em casa, porém, mostra-se mal-humorado, calado, pouco disponível, distante, sempre cansado e irritado. Não é companheiro, joga-se na frente da televisão ou enfia-se num jornal, responde às perguntas de forma evasiva, não convida a mulher para sair e a acompanha de má vontade nos compromissos pessoais. Sua mulher e filhos percebem esta ambigüidade e ficam num grande dilema. A mulher pode se contentar em ser invejada pelas amigas e esconder cuidadosamente a sombra de seu companheiro. Muitas se rendem à imagem pública e passam a desempenhar papéis coadjuvantes, vivendo um faz de conta onde não há espaço para descobrirem seu valor pessoal. Ao negar suas limitações, este homem de sucesso acaba projetando-as nas pessoas mais próximas que ficam a mercê desta imagem distorcida e não conseguem enxergar seu próprio potencial. Outros, principalmente na adolescência dos filhos ou na crise de meia idade da mulher, tentam virar a mesa e denunciar esta farsa. A mulher entra em depressão ou passa a ser crítica e os filhos podem apresentar sintomas físicos, buscar refúgio em drogas ou adotar um comportamento rebelde.

Esta pode ser a grande oportunidade de tirar as máscaras e abrir espaço para uma verdade libertadora para todos. A mulher que se anulou para que ele brilhe pode descobrir sua própria contribuição na luz que ele irradia. Geralmente ela tem qualidades consistentes de hospitalidade, serviço e reflexão. É uma pessoa profunda, que sabe ouvir e encorajar os outros. Além de reconhecer suas qualidades, ela precisa aprender a receber e precisa se dar o direito de colocar limites. Ele precisa admitir sua fragilidade, sua superficialidade, sua insegurança para descobrir que pode ser amado apesar delas. A relação se fortalece nesta nova parceria onde cada um percebe a contribuição do outro e a possibilidade de fertilizar-se mutuamente. Ele desce do seu pedestal e encontra um acolhimento nesta mulher que pode finalmente descobrir o seu lugar ao seu lado. Os filhos conquistam o direito de serem reconhecidos e desenvolver suas características pessoais num ambiente de respeito das diferenças e de encorajamento.
Em vez de delegar a responsabilidade pela sua vida ao marido e limitar-se a sofrer calada ou aprimorar o papel de vítima, a mulher precisa resgatar em Deus a sua verdadeira identidade de filha amada, capacitada pelo Espírito e chamada a uma vocação pessoal e intransferível. O homem precisa ter a humildade de assumir sua sombra e abrir mão do reconhecimento público para descobrir-se acolhido por Deus incondicionalmente, não pelos seus méritos, mas apesar de seus pecados, como Pedro foi acolhido por Cristo após tê-lo traído. Quando experimentamos esta aceitação na hora que nos sentimos mais inadequados, somos libertos da compulsão de seduzir para sermos amados e podemos então ter a coragem de nos mostrar como somos, com toda a nossa humanidade.

Isabelle Ludovico da Silva, psicóloga com especialização em Terapia Familiar Sistêmica. isabelle@ludovicosilva.com.br

domingo, 22 de agosto de 2010

O cuidado de Deus não é fábula!


por Valdir Steuernagel

Há algumas histórias bíblicas com as quais temos uma relação ambígua: gostamos delas e delas tiramos constantes ensinamentos. Mas a verdade é que achamos meio difícil acreditar nessas histórias, pois caem muito melhor para as crianças...

Ver os olhos dos pequenos se arregalando e a adrenalina subindo, num salivar de interesse e total envolvimento, nos fascina e encanta. “E então veio um grande peixe...”, narramos, e o grito deles deixa transparecer todo o seu cativamento. Nós, os adultos, é que contamos a história; mas acreditar nela do mesmo jeito, soltando os mesmos gritos de empolgação, aí já é diferente e bem mais difícil. Dessa ponta de ceticismo e raiz de dúvida, nem nós, os pregadores da Palavra, estamos livres. Penso na minha própria experiência ministerial e nas vezes em que preguei sem sair muito convencido do que disse. “E, se Nínive se converteu, qualquer das nossas cidades pode se converter!”, declarava com eloqüência. Mas, quando as pessoas iam embora e eu, sozinho, descia as escadarias da igreja e retornava à minha casa, perguntava a mim mesmo se acreditava no que dissera. E aí me deparava com todo o meu ceticismo e minha dificuldade de crer.

Uma das dificuldades que temos com as histórias bíblicas é que elas refletem uma realidade muito diferente da nossa, com a qual temos dificuldade de nos relacionar. Acabam sendo coisa de outro tempo e de outro mundo. Tenho visto que um dos segredos é tentar trazer o relato bíblico para dentro do nosso mundo. Aí vejo que ele cabe muito bem na nossa realidade e vai tomando formas que constroem uma bonita ponte entre aquela realidade e a nossa; e o nosso ceticismo vai sendo vencido pela realidade do amor e do cuidado de Deus. E estes, por sua vez, vão tomando forma e assumindo diferentes sabores, cheiros e expressões, sempre a nos dizer que Deus é o mesmo ontem, hoje e sempre (Hb 13.8) e cuida de nós ontem, hoje e sempre.

Vamos ver isso mais de perto?
O cuidado de Deus assume muitas formas

Cada vez mais eu me vejo envolto pelo cuidado de Deus e falando desse cuidado que expressa a natureza divina e nos cativa com seu amor. Esse cuidado assume muitas e diferentes formas e se expressa nas pequenas coisas da vida e no nosso cotidiano. Mas às vezes ele assume uma forma radical e dramática.

Quem já não ouviu falar da história de Elias e de como Deus o sustentou à beira de um riacho remoto, à base de pão e carne? Cardápio simples e suficiente, mas servido de um jeito estranho e nada apetitoso: “disk-corvo”! O problema é o corvo que, sob orientação direta de Deus, visita o profeta duas vezes ao dia: “Depois disso a palavra do Senhor veio a Elias: ‘Saia daqui, vá para o leste e esconda-se perto do riacho de Querite, a leste do Jordão. Você beberá do riacho, e dei ordem aos corvos para o alimentarem lá.’ E ele fez o que o Senhor lhe tinha dito. Foi para o riacho de Querite, a leste do Jordão, e ficou lá. Os corvos lhe traziam pão e carne de manhã e de tarde, e ele bebia água do riacho” (1 Rs 17.2-6).

Falemos cá entre adultos: nós celebramos o sustento que Deus dá ao profeta, mas seu jeito de fazê-lo não desce com tanta facilidade na garganta da nossa credibilidade. Seja porque não nos agrada a idéia de um corvo chegar carregando nosso almoço num bico que bicou sei lá onde, seja porque a nossa verve racional começa a fazer perguntas sobre este episódio. Então, preferimos contá-lo a um grupo de crianças crédulas e fascinar-nos com o seu cativamento!
Trazendo o "corvo" para mais perto

Certa vez, visitando os pais da Silêda no Maranhão, eu compartilhei com eles a minha estranheza acerca do corvo levando carne ao profeta. “Que tipo de carne?”, comentei.

Então a mãe dela, mulher de histórias e parábolas, falou: “Pois é... papai sempre nos contava daquela vez em que a família dele foi alimentada por um urubu!”

E contou uma experiência ocorrida lá pelo final do século 19, quando a família do seu pai vivia no interior do Ceará. A vida era difícil e atormentada. Às vezes, eles tinham de abandonar a casa por causa dos bandos de cangaceiros que tomavam conta de tudo. Eles chegavam e se instalavam na propriedade, sem dia marcado para ir embora. Quem não fugia, morria. E os donos acabavam debandando. A necessidade constante de fugir já fizera disso uma empreitada organizada. Suprimentos e utensílios básicos tinham de acompanhar a fuga, pois não se sabia quanto tempo a família inteira precisaria ficar escondida no mato.

Numa dessas fugas, a permanência no esconderijo prolongou-se além do previsto. Os dias passavam e nada de os bandidos irem embora. Os mantimentos estavam acabando, o nervosismo aumentando e todos vivendo a dificuldade de não saber o que fazer. E chegou o dia em que só havia feijão para cozinhar. Era o resto, e era só feijão mesmo. Nem sal havia!

Era costume na região salgar a carne e pendurá-la num varal para secar e virar carne de sol. Volta e meia os varais eram visitados por famintos urubus. Pois não é que naquele dia, enquanto o feijão cozinhava na panela, um bando de urubus sobrevoou o local e um deles, não conseguindo mais carregar o toucinho que havia roubado de algum varal, deixou-o cair justamente ali! Na pressa do roubo e sem muito tempo para fazer escolhas, ele havia agarrado um pedaço maior do que suas garras podiam transportar. Cansadas, elas se renderam e o toucinho despencou exatamente lá onde a família escondida olhava, ansiosa e faminta, para o feijão sem tempero!

Foi pura benção e absoluto cuidado de Deus! O feijão foi salgado e a refeição enriquecida pelo presente do urubu. Assim, não apenas Elias foi alimentado por um corvo. Aqueles rostos ansiosos e tensos, no indesejado esconderijo, nos confins do sertão nordestino, experimentaram o alimento trazido por um “corvo” como um providencial presente, tão inesperado e inusitado quanto necessário.

Dona Lídia me trouxe a história de Elias para perto. Para a sua própria família, ainda que para dias que já vão longe. Mas ela me ajudou a entender que a história de Elias é coisa de Deus e, sendo de Deus, é coisa para os nossos dias. A dificuldade é que muitas vezes não queremos nem conseguimos ver os corvos trazendo o nosso toucinho, expressão do cuidado e do amor de Deus. Mas que tem toucinho no feijão, isso tem.

Valdir Steuernagel é pastor luterano, trabalha com a World Vision International e com o Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.
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