sábado, 30 de julho de 2011

Delas é o Reino


Por Carlos Queiroz

A infância violentada afronta a vida.

A morte brutal da menina Isabella Nardoni, crime que adquiriu contornos de comoção nacional, foi apenas mais um episódio de uma chaga quase cultural no Brasil: a violência contra crianças e adolescentes. Dos maus-tratos à tortura, da negligência ao assassinato, cada vez mais meninos e meninas são vitimadas – e isso independe de origem social, étnica ou religiosa. Entre as diversas formas de violência praticadas contra menores, o abuso sexual é, tristemente, uma das mais comuns. Ela pode ocorrer nas ruas contra crianças abandonadas; dentro das próprias famílias; ou no crime organizado, para fins comerciais. Seja qual for a forma, as crianças e adolescentes submetidas a este tipo de violência sofrem danos irreparáveis para o seu desenvolvimento físico, psíquico, social e moral.

As vítimas são garotos e garotas que tiveram suas infâncias roubadas, viram seus sonhos perdidos e passam a enxergar o futuro sem perspectivas. Lembro da frase que ouvi de uma criança de 11 anos: “Transei com um gringo, recebi o dinheiro e fui comprar brinquedos”. Uma criança com atividade de adulto, mas com corpo e cabeça ainda infantis. Qual será o futuro dessa menina? E de tantas outras vitimadas pelo abuso e exploração sexual no Brasil? O relato da menina F. G., de sete anos, contando o que o padrasto fazia com ela, traduz essa perversidade: “Ele dizia que eu não podia falar nada, senão iria apanhar. Todos os dias ele namorava comigo, quando minha tia ia trabalhar”.

Tão grave quanto a violência é o muro de silêncio que cerca situações como essa, erigido pela indiferença da sociedade e pela cultura da impunidade dos agressores. Tais constatações nos trazem profundo pesar e indignação; mas, ao mesmo tempo, o desejo de despertar e mobilizar sentinelas comprometidas a combater toda forma de violência contra a vida de adolescentes e crianças inocentes.

Precisamos, como seguidores de Jesus Cristo, amar as crianças e protegê-las. Elas devem ter acesso e direito aos símbolos religiosos, que intencionam comunicar à sociedade o livre direito de cidadania celestial. Acolher e respeitar a criança nos ambientes religiosos constitui-se num belo testemunho e exemplo para a sociedade. Precisamos propiciar às nossas crianças espaços coletivos de lazer e educação, ambientes comunitários onde, sob os olhares de muitos, nossas crianças sejam mais percebidas como atores da revelação de Deus e não como objetos dos desejos desumanos e interesses comerciais.

A Igreja, principalmente, não pode manter-se indiferente a um problema tão grave. A infância violentada afronta a vida e encobre a possibilidade de acolhermos a revelação de Deus através dos pequenos. Jesus disse: “Quem recebe uma criança a mim me recebe; e quem me recebe, recebe o Pai que me enviou”. As crianças são prioritárias no Reino de Deus, conforme o próprio Cristo afirmou: “Delas é o Reino dos céus.” Além de agir diretamente em seu socorro, a Igreja e seus agentes precisam acionar os mecanismos legais de responsabilização – a família, a escola e o Estado.

A atitude de proteção e cuidado com as nossas crianças é muito mais do que emitir significativos gestos de amor e justiça pelos pequenos filhos do Reino. Trata-se, antes de tudo, de uma questão de compromisso com o Deus eterno, o Pai criador e protetor de todas as crianças. Faça da sua igreja uma comunidade em que o bem suplanta e vence toda forma de mal e violência. Quantas Isabellas estão sendo vítimas, neste exato momento, de atrocidades no Brasil? E quantas não serão sequer mencionadas, por pertencerem às classes baixas, condenadas ao esquecimento e à indiferença?

Se somos filhos e filhas do Reino de Deus, proteger e servir a toda e qualquer criança é servir aos filhos e filhas deste mesmo Reino. Se fizermos isso, estaremos resgatando parte importante do todo, dessa criança-humanidade amada pelo Senhor.

sábado, 23 de julho de 2011

Barnabé, um levita natural de Chipre. Nada mais do que isso


Por Harold Segura

A primeira vez que o Novo Testamento menciona seu nome, chama-o José e diz que era «um Levita de Chipre, a quem os apóstolos deram o nome de Barnabé, que significa Encorajador» (Atos 4:36). Voltei a esse texto durante estes dias da minha visita a Larnaca e Nicosia, ambas cidades da Ilha de Chipre. Li também os outros textos bíblicos nos quais se menciona a Bernabé — exatamente trinta vezes— e renovei minha admiração por quem, desde os tempos de seminarista, tem sido meu personagem favorito de tantos que a Bíblia registra.

Há alguns meses, e graças ao meu interesse recente por aprender um pouco mais acerca da iconografía cristã antiga, me dei a tarefa — como simples aprendiz curioso— de buscar na Internet alguns dos ícones de Barnabé. Instalei um dos mais antigos no meu notebook como papel de parede onde permaneceu por várias semanas diante dos olhares surpresos de meus amigos e amigas que me perguntavam: Que santo é esse? e Por que um ícone da hagiografia antiga no computador de um pastor evangélico? Não sei se minha resposta satisfez as curiosidades: que era simplesmente interesse teológico (quanto à iconografia) e admiração pelo personagem (quanto à Barnabé).



Como não admirar a um homem que, sem ser um dos protagonistas mais visíveis do relato neotestamentário seja, ao mesmo tempo, um dos mais importantes no desenvolvimento da chamada igreja primitiva? É, para usar o jargão cinematográfico, um ator de elenco, sem o protagonismo de Paulo, nem sequer de Timóteo ou de Maria. Aparece por momentos e desaparece sem que nos demos conta e, no final, despede-se da cena em Gálatas 4:10 com uma simples e discreta alusão de que era o primo de Marcos (como um dos quatro evangelistas, Marcos chegou a ter o papel protagônico que nunca se lhe assignou a seu primo).

Barnabé foi importante, sem necessidade de chegar a ser protagonista (me refiro aos mais brilhantes e lembrados com o tempo). Talvez nisto esteja a lição mais urgente de nosso personagem cipriota. Quando a igreja de Jerusalém recibeu a notícia da conversão de Saulo e reagiu com natural e compreensível desconfiança (Saulo havia sido um de seus perseguidores), foi Barnabé quem buscou o ex-perseguidor convertido, creu em sua história de fé e o recomendou diante da igreja:

Quando chegou a Jerusalém, tentou reunir-se aos discípulos, mas todos estavam com medo dele, não acreditando que fosse realmente um discípulo. Então Barnabé o levou aos apóstolos e lhes contou como, no caminho, Saulo vira o Senhor, que lhe falara, e como em Damasco ele havia pregado corajosamente em nome de Jesus. (Atos 9:26-27).
Quando Paulo, já depois de vários anos de experiência missionária desconfiou de João Marcos como companheiro de trabalho, Barnabé decidiu confiar nele, ainda que por essa diferênça de critérios teve que se separar de Paulo e tomar outro caminho. Creu na capacidade ministerial de João Marcos e optou por ele:

Barnabé queria levar João, também chamado Marcos.Mas Paulo não achava prudente levá-lo, pois ele, abandonando-os na Panfília, não permanecera com eles no trabalho. Tiveram um desentendimento tão sério que se separaram. Barnabé, levando consigo Marcos, navegou para Chipre... (Atos 15:37-39).

Vemos, então, que, pela mediação de Barnabé, a igreja aceitou Paulo. Também por seu respaldo, João Marcos, com o passar dos anos, foi reconhecido como pilar da Igreja. Se por simples exercício estatístico somarmos os escritos canônicos atribuídos a Paulo (treze epístolas) e a Marcos (um Evangelho), temos como resultado que, graças ao ministério de Barnabé, mais de cinquenta por cento dos livros do Novo Testamento (não é que tenha simpatia pela estatística bíblica, mas recorremos a ela nesta ocasião pela necessidade do exemplo). Há mais: quando a igreja de Jerusalém necessitou de uma pessoa de confiança para se encarregar de uma tarefa de confirmação pastoral em Antioquia, deu-a a Barnabé (Atos 11:22-23). Quando o Espírito Santo necessitou de uma pessoa para confiar o primeiro projeto missionário entre os gentios, encontrou Barnabé (Atos 13:2). Trinta versículos no total mencionam seu nome e destacam o valioso serviço prestado à igreja. Talvez seja Atos 11:24 seu melhor retrato: «Ele era um homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé».

Ele foi um personagem extraordinário, sem necessidade de recorrer ao sensacionalismo (o pecado de Simão, o mago), foi um homem compreensivo, sem necessidade de se converter em complacente (enfrentou o grande apóstolo Paulo em várias ocasiões) e, chegou a ser um dos mais importantes servidores das primeiras comunidades cristãs, sem o menor indício de buscar protagonismo. Exemplo do que hoje temos costumado chamar de liderança de serviço, não lhes parece?

Agora compreendam meu afã. Desde o primeiro dia que cheguei a Chipre tenho buscado com insistência infantil um ícone original do personagem. Já estou regressando e ainda não consegui encontrá-lo, apesar de insistente e teimoso em meu intento (que o digam os que me acompanharam aos passeios turísticos de Larnaca e de Nicosia).

O que aconteceu com Barnabé? Alguém sabe? Nem sequer nas lojas de artesanatos religiosas de seu próprio país o levam a sério. Dizem os vendedores, cipriotas, gregos e turcos, todos igualmente, que são mais rentáveis os ícones de Lázaro (segundo a tradição, sua segunda tumba está em Larnaca), de Nicolás, de Espiridão (cristão nascido em Chipre, no século III, declarado bispo depois de ser perseguido pelo imperador Maximino) e de Catalina (que esteve prisionera em Salamina, antiga Chipre, segundo a tradição). Todos, ao que parece, até o imperador Constantino (que aqui é venerado como santo) valem mais e são mais conhecidos que meu querido personagem.

Bom, Barnabé, no final, o que mais vale, como bem o sabias, é ter sido um simples servidor das igrejas, decidido consolador dos excluídos (teu nome significa filho de consolação) e ativo promotor do Reino. Disto, meu bom amigo, como você viu, não se deram conta os vendedores, nem os compradores; e ao que parece, tão pouco nossas igrejas.

Larnaca, Chipre, novembro de 2010

Harold Segura é teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã (Encontro Publicações, 2007) e de Para que Serve a Espiritualidade? (Ultimato, 2010).

sábado, 16 de julho de 2011

Renovar para viver


Esther Carrenho

Agarramo-nos rigidamente a ideias, experiências e coisas antigas – e assim, negamos a nós mesmos as novas vivências que poderão enriquecer nossas vidas.
O novo só nasce quando o velho lhe cede espaço.

Renovação. Palavra que sintetiza novos sonhos, novos rumos, outras descobertas, ideias e conquistas! E é muito bom que a renovação aconteça. Afinal, planejar novos alvos, abrir-se para observar o diferente, reconhecer que há algo errado onde antes havia a certeza de que tudo estava certo e descobrir novas vivências são sinais de que a vida está acontecendo. O cantor e compositor Raul Seixas expressou tal sentimento em uma de suas músicas: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”

O que não se pode esquecer é que o novo só nasce quando o velho cede espaço. É necessário se despedir daquilo que não serve mais, mesmo que seja algo que cooperou para as novas aquisições. Acontece que agarramo-nos rigidamente a ideias, experiências e coisas herdadas, adquiridas – as boas e as más. E acostumamo-nos até com aquilo que nos prejudica, ao mesmo tempo em que rejeitamos o novo sem a devida reflexão e julgamento para avaliar que o preço a ser pago vale a pena. Assim, negamos a nós mesmos as novas vivências que poderão enriquecer nossas vidas

Na Bíblia, temos o exemplo dos hebreus, que estavam sendo explorados, escravizados e torturados havia séculos pelos egípcios. A libertação chegou sob a liderança de Moisés, que os conduziu pelo deserto em direção a Canaã. Nas primeiras dificuldades da caminhada, entretanto, boa parte do povo começou a reclamar e a sentir a falta das coisas que ficaram para trás, nos tempos da escravidão. O povo ansiava por alhos, cebolas e melões – enquanto que, mais à frente, ficava a terra da qual, segundo lhes prometera o Senhor, manava leite e mel.

Esse episódio é uma boa ilustração da necessidade que temos de renovar muitas áreas da nossa vida. Quando o velho perde o sentido, temos a escolha de caminhar em direção ao novo. Mas, entre a comodidade do antigo e a estranheza do novo, há o deserto do nada, que é o esvaziamento do que tínhamos antes. Enquanto mantemos os olhos naquilo que não tem mais valor e perdeu o sentido, desprezamos a oportunidade de conhecer e experimentar o que chega. Sim, é preciso deixar o que morre para poder desfrutar do que nasce.

Renovar é um processo que deve fazer parte de toda a vida. O bloqueio das descobertas começa, em geral, na infância, quando as crianças são censuradas duramente por experimentar novos caminhos. Adultos, zelosos em extremo, não permitem aos filhos o risco dos erros da experiência; ou então temem tanto os possíveis acidentes, comuns na infância, que exageram no cuidado, coibindo todo e qualquer comportamento um pouco mais ousado. O menino é criticado por ter subido a um muro, por causa do risco de cair e, quem sabe, quebrar uma perna. Ou então uma garota é punida porque desmontou a boneca por pura curiosidade de conhecer o mecanismo dentro dela. No entanto, as ações típicas da infância só indicam que há um desejo de explorar e conhecer novas coisas, adquirir outras informações.

Há ainda os adultos impacientes que não aguentam esperar o tempo necessário para que o iniciante execute sua tarefa, aprendendo por si mesmo. Crianças e adolescentes que sofrem este tipo de proibições podem se tornar adultos presos, formatados ao que é estabelecido pelos outros. Ou, então, partem para outro extremo, rejeitando, junto com o que é nocivo, todas as boas coisas antigas recebidas e que deveriam ser perpetuadas. Assim, entram no desconhecido sem o devido cuidado, pagando alto preço, sem contar que ainda correm o risco de percorrer caminhos que levam a danos para toda sua vida, sem a possibilidade de retorno e acertos.

Maturidade emocional requer que o indivíduo faça uma avaliação de tudo que foi recebido, julgando por si o que precisa ser descartado e o que deve ser perpetuado. Quem é capaz de filtrar o que lhe chega e ir construindo seu caminho de acordo com as próprias avaliações terá também recursos internos para ouvir, ver e refletir acerca de novas perspectivas, ideias e descobertas. E, ainda que sinta-se inseguro, saberá, sozinho ou com o conselho de outrem, escolher o que deve fazer parte de sua vivência.

Que novos alvos, condutas, atitudes e aquisições possam acontecer na vida de cada um de nós. E, se acontecer o fracasso, que haja coragem para reconhecer que o insucesso é apenas uma boa coisa que não deu certo – e que vale a pena recomeçá-la de outro jeito.

sábado, 9 de julho de 2011

Não só no trágico vive o homem


Luiz Vanderley de Lima

"Há um Deus por trás da história"

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” (Rui Barbosa).

Alguns de meus amigos tem se mostrado desesperançados e manifestaram o mesmo sentimento: não acreditam mais em mudanças. Um chegou a dizer: “Meu amigo, eu participo das coisas, dos eventos, dos movimentos, mas no fundo eu acho que não vai dar em nada. Ninguém aqui vai fazer nada pra mudar a situação”. Independente do contexto específico de cada um, o ponto em comum é que ambos perderam a esperança que foi detonada pela realidade que os cerca, tal qual foi exposto nos versos de Rui Barbosa acima.

Quero usar este post para dar uma resposta a estes meus amigos e a tantos outros que se encontram no mesmo estado.

Sabe amigos, para mim, o que mais detona a esperança e a alegria de viver é quando a realidade nos chega com toda sua nudez e crueza. Quanto mais dura for esta realidade e quanto mais ampliarmos a nossa visão da mesma, mais a esperança será duramente atacada e terá pouca chance de prevalecer. Vocês têm razão, então, de estarem assim, pois vivendo o que vocês vivem seria um milagre manter a esperança.

Assim, o acesso constante a notícias trágicas; a invariabilidade ou a inércia por parte dos que nos cercam quanto a se procurar e se tentar efetivamente mudanças; a demora no retorno de respostas satisfatórias; a mesmice, o engessamento dos sistemas; as situações de dor, de sofrimento e de caos que se mostram inalteradas e prevalecem contra todas as tentativas de solução e cura, sim, todas estas coisas podem mesmo detonar a esperança, a motivação, a alegria de viver. Mas gostaria de lhes dizer como eu tenho tentado lidar com esta realidade pra não deixá-la me dominar. O que vou lhes expor é uma escolha deliberada e dinâmica por uma forma de construir a vida. São práticas que lanço mão à medida que percebo minha esperança ser alvejada.

Não ficar inerte no trágico. Sempre há alguma coisa a ser feita e o sentimento de que estamos fazendo algo pode nos retornar a esperança. Uma palavra de conforto, uma ajuda prática e solidária, erguer a voz em protesto, assinar um manifesto, qualquer ato que se direcione a mudar a realidade mantém a esperança viva. Ainda que nos consideremos totalmente impotentes para qualquer ação, teremos ainda um recurso eficaz: a oração – pedir a Jesus que console e ampare os envolvidos. Pra mim é muito consolador saber que há um Deus por trás da história humana e que Ele não está impassível nem ausente, mas continua trabalhando para demonstrar seu amor a todos. Esta certeza pode não responder o trágico, mas conforta na tragédia. E, é claro, pode ser que nós sejamos a resposta amorosa de Deus à tragédia de muitos.

Não ficar imerso no trágico. Se por um lado agir diante do trágico nos move a vida, por outro, não posso me esquecer que a vida tem outros lados, sim. E, por mais que seja inevitável encarar a tragédia e sua realidade, devo sempre escolher dar um tempo para o lúdico, para o ócio, para o lazer. Amigos, conversa fiada, contar “causos”, piadas, ver filmes descontraídos, uma dormidinha de leve, curtir os filhos, dar um bom tempo ao cônjuge… A percepção da realidade deve estar entremeada com estas coisas que confortam e nos levam para um outro lado também real da vida.

A esperança é detonada quando o funesto da vida ocorre full-time. Temos de dar uma parada e olhar pra este outro lado que esta bem ali na frente da gente e, às vezes, clamando por nosso tempo, por nosso riso. Aliás, pode ser que nossa imersão no trágico esteja nos afastando de alguns de nossos queridos e esteja fazendo-os viver a tragicidade de uma vida longe de nosso convívio. Assim, volta e meia, precisamos mudar de assunto, mudar o foco, esticar as pernas e dar boas risadas.

sábado, 2 de julho de 2011

Os benefícios de estar destroçado


Por Philip Yancey

A graça de Deus, única solução para a morte e a maldade, vem sem custos, livre da lei, livre dos esforços humanos para obtê-la.

Ao ouvir os discursos nos períodos de eleições, alguém pode sugerir que uma nova safra de políticos resolverá os problemas que o país tem enfrentado. Uma vez eleito, o candidato resolverá os problemas da educação, a crise na saúde, eliminará a pobreza, ajustará a economia e unirá o país.

Para dois problemas, entretanto, nenhum político ousa apresentar soluções: morte e maldade. Endêmicos à condição humana, esses dois problemas nos acompanharão por toda nossa vida. São exatamente esses os problemas que o evangelho de Cristo promete solucionar – não através da política ou ciência, mas através de um projeto que se iniciou no Gólgota.

Estudiosos da Bíblia mostram que o capítulo 3 de Romanos é a mais compacta exposição das boas novas. Antes de revelar a cura para aqueles dois males, Paulo detalha a impotência da humanidade em achar solução por conta própria. Desse modo, ele impressiona seus ouvintes com a gravidade da “doença” antes de apresentar sua cura. Sou confrontado com as três categorias de pecadores apresentadas por Paulo em Romanos 1 e 2. Ele começa descrevendo infratores flagrantes: depravados, assassinos e inimigos de Deus (embora, curiosamente, ele também mencione os pecados “de todo dia”, como ganância, fofoca, inveja e desobediência aos pais).

Como seus leitores eram cidadãos conscientes, presunçosos por sua superioridade moral ante àqueles depravados, Paulo vira a mesa do jogo no capítulo 2: “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas”.

Posso nunca ter roubado um banco, mas será que eu já soneguei meus impostos? Ou será que eu fiz alguma obra em minha casa sem que tivesse licença para fazê-la? Será que já ignorei uma necessidade por causa de preguiça? Paulo segue a lógica de Jesus apresentada no Sermão do Monte: Homicídio e adultério diferem de ódio e luxúria apenas por uma questão de grau. Na verdade, a pessoa que comete um mal flagrante tem uma vantagem peculiar: um giroscópio interno na consciência que registra a sensação de estar fora de curso.

Certa vez, aceitei participar de um programa de cristãos chamado de os 12 passos, como os Alcoólicos Anônimos. Enquanto falava com os que ali estavam e ponderava acerca do que ia dizer, eu finalmente decidi pelo irônico título: “porque às vezes eu desejaria ser um Alcoólico”. Ocorreu-me que aquilo que os levava a confessarem-se todos os dias – falhas pessoais, a necessidade diária de graça e ajuda de amigos e de um poder maior – representa altos obstáculos para aqueles de nós que se orgulham de sua independência e auto-suficiência.

Paulo reservou seus comentários mais contundentes para uma terceira categoria de homens, os portadores de justiça própria, que em seus dias eram, majoritariamente, judeus que se orgulhavam por guardar estritamente a lei. Fariseu dos fariseus; Paulo conhecia muito bem esse título, como atesta em uma de suas cartas. Ele se refere aos depravados como “eles”, e aos bons cidadãos como “vocês”. Entretanto, quando ele discursa sobre a justiça própria, ele usa a primeira pessoa do plural. “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma!”.

Nos seus piores dias concernentes à justiça própria, Paulo perseguiu cristãos e esteve presente no apedrejamento de Estêvão. Ele sabia dos perigos que acompanhavam aqueles que se achavam moralmente superiores. Assim como a negação pode fazer com que pessoas não procurem médicos por cause de um nódulo, pondo, assim, vidas em risco, a negação do pecado pode conduzir a conseqüências ainda maiores. A menos que aceitemos esse desolador diagnóstico, não encontraremos cura.

A descrição da confissão de Paulo sobre sua justiça própria me faz lembrar um incomum esforço de M. Scott Peck para identificar uma nova desordem psíquica chamada mal. Em seu livro “Povo da mentira”, Pack analisa os tipos de maldade e conclui, como Paulo, que os piores deles são os mais sutis. Todos condenamos abusos infantis – mas o que dizer sobre pais controladores e manipuladores que trazem conseqüências devastadoras sobre suas crianças? Pack menciona uma surpreendente característica da maldade: atitude de se esquivar; intolerância com críticas; preocupação pública para com sua imagem e com sua respeitabilidade; fraqueza intelectual.

Paulo conclui: “Não há um justo; nem um sequer”. Talvez na passagem mais sombria de toda a Bíblia, ele fez uma conjunta descrição anatômica deste problema, ao dizer que eles têm: línguas enganadoras, gargantas como um sepulcro aberto, lábios venenosos, pés violentos e olhos arrogantes (Rm 3.10-18). Todas essas coisas estabelecem a magnífica apresentação do evangelho que começa em Romanos 3.21, a explicação da justificação pela fé somente que desencadeou a Reforma Protestante.

A graça de Deus, única solução para a morte e a maldade, vem sem custos, livre da lei, livre dos esforços humanos para obtê-la. Para essa livre oferta, nós só precisamos manter abertas as nossas pobres e necessitadas mãos – o gesto mais difícil para alguém cheio de justiça própria.

Copyright © 2008 por Christianity Today International
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