domingo, 25 de abril de 2010

Necessidade ou desejo?

por Erasmo Vieira

É necessário mudar a relação de gastos, pois não está havendo receita

Quero agradecer, em primeiro lugar, a todos que participaram da pesquisa “Desafio Financeiro”. Os mais de 200 e-mails me possibilitaram relacionar os quatro ítens que causam tantos problemas financeiros:

1. Gastar mais do que se ganha todos os meses.
2. Falta de planejamento financeiro e controle do emprego do dinheiro.
3. Não valorizar o dinheiro ao gastá-lo com coisas totalmente supérfluas.
4. Cair na tentação do consumismo e se perder em vários financiamentos.

Por meio disto, percebi que o maior problema das dívidas está em se fazê-las sem planejamento. Quando propus esta pesquisa, tive como objetivo ajudar às pessoas.

Muita gente me escreveu e respondi a todos os e-mails. Gente que ganha R$ 6.500,00 e está totalmente endividada e gente que ganha R$ 350,00 e que vai se casar ainda este ano e sem dívidas.

Às pessoas que me escreveram e que estavam sem emprego, fica a dica de que é necessário mudar a relação de gastos, pois não está havendo receita.

Quero desafiá-lo novamente a mudar isto em sua vida. A primeira dica que vou lhe passar é necessidade X desejo. Praticando isto, tenho certeza que muita gente já começará a gastar menos.

Ao falar sobre finanças pessoais, sempre é importante mencionar a causa de todos problemas da vida financeira pessoal. Na realidade, existem dois tipos de gastos que efetuamos: o gasto necessário ou compra necessária e o gasto desejado ou compra desejada. Estes dois tipos de gastos ou compras irão gerar a dívida necessária ou a dívida desejada (que acontece, normalmente, quando a pessoa não tem os recursos para efetuar o pagamento).

Vamos falar primeiro sobre o gasto necessário. A alimentação é, por exemplo, um gasto necessário. Não pode faltar comida em casa! Neste caso, mesmo que você não tenha os recursos, você utilizará uma das formas que temos hoje de extrapolar o limite de gastos que é por meio da nossa renda. Você efetuará a compra e utilizará o cartão de crédito, o cheque especial, o cheque pré-datado ou até o financiamento. Mas é uma necessidade, portando, é um gasto muito difícil de ser evitado. Porém, mesmo assim, não custa nada planejar um pouco se perguntando: “Qual taxa de juros é a menor: a do cartão ou a do cheque especial?” No cheque pré-datado, devo planejar se vou ter os recursos para a data que estou dando o cheque. Ao utilizar o cheque pré-datado, você está comprometendo a sua renda futura.

Porém, na maioria das vezes, os maiores problemas são causados pelo gasto desejado. Gastar dinheiro é muito bom, é um prazer gastar dinheiro e o dinheiro foi feito para gastar. A pressão pelo consumismo hoje é enorme e, muitas vezes, você realiza um gasto que poderia ser evitado, pois está atendendo a um desejo, não a uma necessidade. Vou mencionar como exemplo a compra de um carro. É uma necessidade ou um desejo? Hoje as montadoras não vendem carros somente. Vendem desejo, status, satisfação e prazer. Na hora da compra do carro devemos analisar: preciso trocar realmente meu carro agora ou posso planejar e guardar um pouco da renda para a troca do carro no futuro?

Ao financiar um carro pagando “juros baixinhos” de 1% a 3% ao mês, você pagará não só o carro, mas, também, os juros embutidos nele. Pergunto: seu carro é mais bonito que os outros, economiza mais combustível que o dos outros só porque você pagou a mais por ele? Você vê que a rua está lotada de carros novos, porém, a grande maioria dos carros, é financiada. Se todos estivessem realmente bem financeiramente, para que pagariam juros? Todos poderiam comprar à vista, mas a pressão para que você ande de carro novo é muito grande.

Adoro carro novo, mas questiono as pessoas se elas dirigem juros. Hoje você compra o carro zero sem entrada, é muito fácil, mas algumas notícias nos levam a crer que algo não está bem. A inadimplência está muito alta.

O carro é só um exemplo, mas também existem outros gastos desejados como eletrodomésticos, móveis, roupas, viagens, alimentação e restaurantes. Tudo isto é muito bom, porém são altamente influenciados pelo desejo. Quem não brigou com o chefe e passou no shopping para comprar uma roupa nova? Este ato é necessidade ou desejo? Será que sua raiva não passaria se você tomasse um banho frio ou fizesse a leitura de um bom livro?

Quando você está com o orçamento equilibrado, tudo isto deve ser aproveitado, mas esta não é a realidade da maioria dos brasileiros. A falta de controle das finanças pessoais está causando problemas de relacionamento, produtividade, acidentes de trabalho e, por conseqüência, prejudicando a qualidade de vida das pessoas.

Em toda e qualquer decisão de gasto pergunte para si mesmo: “É necessidade ou desejo?”

Deus nos dá a bênção de trabalhar e ganhar dinheiro e nós devemos ter sabedoria para gastá-lo. Que todos possamos viver em paz com o seu dinheiro.

Erasmo Vieira
Palestrante e Consultor de Finanças Pessoais planner@plannerfinancas.com.br / www.plannerfinancas.com.br

domingo, 18 de abril de 2010

Os benefícios de estar destroçado

Porque às vezes eu desejaria ser um alcoólatra

por Philip Yancey

Ao ouvir os discursos neste período de eleições, alguém pode sugerir que a nova leva de políticos em Washington resolverá os problemas que essa nação tem enfrentado, ou até mesmo os problemas do mundo. Uma vez eleito o candidato X, ele ou ela resolverá os problemas do aquecimento global, a crise na saúde, eliminará a pobreza, ajustará a economia e unirá um país dividido.

Para dois problemas, entretanto, nenhum político ousa apresentar soluções: morte e maldade. Endêmicos à condição humana, esses dois problemas nos acompanharão por toda nossa vida. São exatamente esses os problemas que o evangelho de Cristo promete solucionar – não através da política ou ciência, mas através de um projeto que se iniciou no Gólgota.

Estudiosos da Bíblia mostram que o capítulo 3 de Romanos é a mais compacta exposição das boas novas. Antes de revelar a cura para aqueles dois males, Paulo detalha a impotência da humanidade em achar solução por conta própria. Como um médico, ele precisa impressionar seus pacientes com a gravidade da doença antes de apresentar sua cura.

Sou confrontado com as três categorias de pecadores apresentadas por Paulo em Romanos 1 e 2. Ele começa descrevendo infratores flagrantes: depravados, assassinos e inimigos de Deus (embora, curiosamente, ele também mencione os pecados “de todo dia”, como ganância, fofoca, inveja e desobediência aos pais).

Como seus leitores eram cidadãos conscientes, presunçosos por sua superioridade moral ante àqueles depravados, Paulo vira a mesa do jogo no capítulo 2: “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas”.

Posso nunca ter roubado um banco, mas será que eu já soneguei meus impostos? Ou será que eu fiz alguma obra em minha casa sem que tivesse licença para fazê-la? Será que já ignorei uma necessidade por causa de preguiça? Paulo segue a lógica de Jesus apresentada no Sermão do Monte: Homicídio e adultério diferem de ódio e luxúria apenas por uma questão de grau. Na verdade, a pessoa que comete um mal flagrante tem uma vantagem peculiar: um giroscópio interno na consciência que registra a sensação de estar fora de curso.

Certa vez, aceitei participar de um programa de cristãos chamado de os 12 passos, como os alcoólicos anônimos. Enquanto falava com os que ali estavam e ponderava acerca do que ia dizer, eu finalmente decidi pelo irônico título: “porque às vezes eu desejaria ser um alcoólatra”. Ocorreu-me que aquilo que levava os alcoólatras a confessarem-se todos os dias – falhas pessoais, a necessidade diária de graça e ajuda de amigos e de um poder maior – representa altos obstáculos para aqueles de nós que se orgulham de sua independência e auto-suficiência.

Paulo reservou seus comentários mais contundentes para uma terceira categoria de homens, os portadores de justiça própria, que em seus dias eram, majoritariamente, judeus que se orgulhavam por guardar estritamente a lei. Fariseu dos fariseus; Paulo conhecia muito bem esse título, como atesta em uma de suas cartas. Ele se refere aos depravados como “eles”, e aos bons cidadãos como “vocês”. Entretanto, quando ele discursa sobre a justiça própria, ele usa a primeira pessoa do plural. “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma!”.

Nos seus piores dias concernentes à justiça própria, Paulo perseguiu cristãos e esteve presente no apedrejamento de Estêvão. Ele sabia dos perigos que acompanhavam aqueles que se achavam moralmente superiores. Assim como a negação pode fazer com que pessoas não procurem médicos por cause de um nódulo ou uma lesão cutânea, pondo, assim, vidas em risco, a negação do pecado pode conduzir a conseqüências ainda maiores. A menos que aceitemos esse desolador diagnóstico, não encontraremos cura.

A descrição da confissão de Paulo sobre sua justiça própria me faz lembrar um incomum esforço de M. Scott Peck para identificar uma nova desordem psíquica chamada mal. Em seu livro “Povo da mentira” Pack analisa os tipos de maldade e conclui, como Paulo, que os piores deles são os mais sutis. Todos condenamos abusos infantis – mas o que dizer sobre pais controladores e manipuladores que trazem conseqüências devastadoras sobre suas crianças. Pack menciona uma surpreendente característica da maldade: atitude de se esquivar; intolerância com críticas; preocupação pública para com sua imagem e com sua respeitabilidade; fraqueza intelectual.

Paulo conclui: “Não há um justo; nem um sequer”. Talvez na passagem mais sombria de toda a Bíblia, ele fez uma conjunta descrição anatômica deste problema, ao dizer que eles têm: línguas enganadoras, gargantas como um sepulcro aberto, lábios venenosos, pés violentos e olhos arrogantes (Rm 3.10-18). Todas essas coisas estabelecem a magnífica apresentação do evangelho que começa em Romanos 3.21, a explicação da justificação pela fé somente que desencadeou a Reforma Protestante.

A graça de Deus, única solução para a morte e a maldade, vem sem custos, livre da lei, livre dos esforços humanos para obtê-la. Para essa livre oferta, nós só precisamos manter abertas as nossas pobres e necessitadas mãos – o gesto mais difícil para alguém cheio de justiça própria.

Traduzido por Daniel Leite Guanaes

Copyright © 2008 por Christianity Today International

domingo, 11 de abril de 2010

Pessoas não mudam


Por Ed René Kivitz

Todos tendem a permanecer sendo o que sempre foram; é preciso aprender a conviver com os outros como eles são

Pessoas não mudam. Elas falam em mudar, mas não mudam. Na verdade, mudam apenas quando não têm outra alternativa. Essa é a tese de Po Bronson em seu livro O que devo fazer da minha vida? (Editora Nova Fronteira), onde relata quarenta histórias tiradas de 900 entrevistas com gente de tudo que é tipo.

Na verdade, Po Bronson é um otimista. Em novembro de 2004, a megacorporação IBM realizou sua conferência de “Inovação Global”, quando reuniu alguns dos melhores cérebros do planeta para propor avanços científicos e tecnológicos capazes de solucionar os grandes problemas mundiais. No topo da agenda estava o setor da saúde, que custa aos Estados Unidos 1,8 trilhão de dólares anuais (três vezes o PIB do Brasil). A grande conclusão a que chegaram foi que muito desta dinheirama seria economizada se as pessoas estivessem dispostas a mudar seus hábitos alimentares e seu estilo de vida. Mas uma pesquisa realizada para subsidiar a discussão mostrou que, mesmo diante da morte iminente, apenas uma entre 10 pessoas mudam seu jeito de pensar e agir. Em outras palavras, para a pergunta: “Se fosse dada a você a opção de morrer ou mudar, o que escolheria?” De cada 10 pessoas, apenas uma escolheria mudar.

Sou tentado a concordar. Ao longo de mais de 20 anos de atividade pastoral, vi muito pouca gente mudando de verdade. Mudanças cosméticas, apenas comportamentais, vi aos montes – mas estruturais, foram poucas. As pessoas tendem a ser o mesmo que sempre foram: os tímidos continuam tímidos, os eufóricos permanecem eufóricos, as mulheres dominadoras seguem dominando, os maridos passivos continuam no cabresto, os trabalhadores continuam trabalhando, o hipocondríacos continuam lendo bulas e por aí vai. Freud explica. Literalmente.

Outro dia fui interpelado por uma jovem após uma de minhas palestras. Seu semblante demonstrava apreensão e sofrimento. Foi direta ao ponto: tinha um noivo um pouco violento, que já a havia agredido duas vezes, mas que sempre chorava, pedindo perdão e prometendo não repetir as agressões. Depois, fez a pergunta: “Pastor, devo me casar com ele?” Contrariando um procedimento padrão, respondi de maneira direta:

“Apenas se estiver disposta a apanhar pelo resto da vida”. É claro que acredito que aquele sujeito pode mudar. Mas como não podemos ter certeza disso, disse à moça que deve se casar somente na hipótese de acreditar que poderá conviver com o marido, mesmo que ele não mude.

Depois daquela conversa, reavaliei minha fé, minha crença no poder transformador do Evangelho e na força da graça. Onde já se viu, um pastor pessimista quanto à mudança das pessoas! Logo eu, que acredito que a transformação pessoal à imagem de Cristo é essencial à mensagem cristã e que o maior problema do ser humano não é o diabo, nem o mundo mau, nem nada que exista do lado de fora, mas seu inimigo íntimo, que habita suas entranhas. Após tantos anos presenciando conversões extraordinárias, cheguei ao ponto de duvidar que as pessoas mudam; ou pior – acreditar que a verdade maior é que as pessoas não mudam mesmo.

Precisei percorrer todo o caminho novamente. Revisei o que me ensinaram, e cheguei a conclusões preliminares que, pelo menos a mim, me fizeram mais sentido. Primeiro, considero que as mudanças de que fala o Evangelho não são necessariamente estruturais, na personalidade ou na índole das pessoas, mas em seus valores, seus amores, e portanto, seus objetos de devoção. A grande mudança do Evangelho não é “eu deixar de ser eu”, mas eu me render à vontade do meu novo Senhor, isto é, não mais o meu eu, mas o Cristo, que vive em mim.

Muita coisa na vida muda, mas continuamos sendo nós mesmos. A conversão não implica na despersonalização. Ela não apaga tudo o que vivemos e nos fez o que somos. Mas após a rendição a Cristo, toda a vida passa por uma revisão, e, necessariamente, deixa-se de fazer muita coisa. E passa-se a fazer outras. Não por obrigação ou culpa, mas por uma nova orientação da vontade: afinal, mudou o objeto de devoção. As figuras “morte e ressurreição”, ou “novo nascimento”, que simbolizam o antes e o depois da experiência mística-espiritual cristã, significam passar a viver orientado para outra direção.

Não é que tenhamos mudado – o que mudou foi a maneira como convivemos com o que sempre fomos, e provavelmente vamos continuar sendo. O extraordinário nisso é que já não somos mais obrigados a ser o que sempre fomos. Não estamos mais escravizados a realizar a sina da nossa personalidade nem a cumprir o vaticínio das marcas que a vida deixa. Somos livres: livres para nos reinventarmos, livres para virmos a ser e, inclusive, livres para continuar sendo o que sempre fomos.

O que muda é que nos relacionamos de maneira tão diferente conosco mesmos, que as pessoas ao nosso redor dirão que parecemos outra pessoa. Conhecemos a verdade, e a verdade nos libertou. Na verdade, as pessoas mudam, mas em número, profundidade e velocidade inferiores ao que desejamos: pouca gente, mudanças razoavelmente superficiais e lentas. Portanto, aprenda a conviver com as pessoas do jeito que as pessoas são. Não passe a sua vida tentando mudar os outros: seu cônjuge, seus filhos, seus amigos, seu chefe ou colegas no trabalho. Deixe isso nas mãos de Deus, à mercê da graça.

Conviva a partir da gratuidade: paciência nos processos, perdão, mais amor, entrega e serviço do que cobranças, exigências e condições. Aprenda a se relacionar com os outros do jeito que eles são. Não tente fazer novas as pessoas. Faça novos acordos. Você vai ver como sua vida vai mudar. E os outros também.

Ed René Kivitz é escritor conferencista e pastor da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Felicidade e Amor


por Ronaldo Martins

As pessoas querem ser felizes. Mesmo o suicida, quando atenta contra a própria vida, almeja interromper o sofrimento. Como os filósofos gregos diziam, felicidade é a “ausência de perturbações”. O desejo de experimentar a paz definitiva ou a superação completa da dor nos move durante toda a existência.

Para compreender as relações entre o amor militante e as possibilidades de uma vida feliz, vou ao baú de Guimarães Rosa ouvir a opinião de Riobaldo:

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”.

Está dito. Felicidade não se encontra em algum lugar, não se compra com tesouros, não é um estado de espírito, tampouco se traduz em um jogo no qual nossa tarefa é buscar no tabuleiro as casas pintadas de alegrias e fugir das casas que escondem as tristezas. Não precisamos jogar dados para sermos felizes. Diríamos que felicidade seja avançar pelo tabuleiro com serenidade e sabedoria, vencendo todas as casas que se apresentarem.

Alguns cientistas que se aventuram a descobrir o verdadeiro caminho da felicidade chegaram a conclusão parecida. Chamou minha atenção a notícia de jornal que destacava uma pesquisa sobre o tema feita por dois psicólogos britânicos: Pete Cohen e Caro Rothwell. Eles desenvolveram a equação da felicidade, que tinha a seguinte fórmula: “Felicidade = P + (5xE) + (3xH)”. “P” são as pessoas, “E” e “H” são aspectos existenciais, como auto-estima, saúde, estabilidade ou amizades cultivadas. Cada entre nós, é um exercício infrutífero querer medir a felicidade por meio de uma equação matemática. Mas vale a pena notar um detalhe do estudo feito pelos britânicos. Durante a aplicação de entrevistas com mais de mil pessoas, eles concluíram que os felizes têm algumas características marcantes: perspectiva de vida, adaptabilidade e capacidade de se manterem otimistas ante a adversidade. As pessoas felizes são aquelas que aprenderam a encarar as possibilidades que a vida lhes apresenta, sem se esconder, seja nos momentos de dificuldades ou nos momentos de alegria.

Seguindo a trilha do mesmo raciocínio, uma série de encontros com o Dalai Lama fez com que o psiquiatra norte-americano Howard C. Cutler abandonasse o mal costume de sequer pronunciar a palavra “felicidade” com objetivo terapêutico, conforme aprendera em sua formação. Depois de conviver por algum tempo com o líder budista, ele chegou à conclusão de que o sentido da vida é perseguir a felicidade. Mas não aquela felicidade que parece só existir nos curtos momentos de prazer. “Na realidade, o fato de nos sentirmos felizes ou infelizes a qualquer dado momento costuma ter muito pouco a ver com nossas condições absolutas mas é, sim, uma função de como percebemos nossa situação, da satisfação que sentimos com o que temos”, afirma no livro A Arte da Felicidade, que surgiu das conversas de Cutler com o Dalai Lama.

A felicidade é sempre grávida de beleza e ninguém consegue ser belo ocultando aquilo que pode gerar desconforto. Quem aparenta tamanha beleza corre o risco de causar uma falsa impressão sobre si mesmo. Aprendi isso depois que plantei um gramado no meu quintal. Para ser verde e bonita, a grama depende de água e sol. Mas ela nos engana. Quando começa a crescer, criando um contraste de cores com as outras plantas do jardim, nos deixa tão entusiasmados que vamos adiando a poda. Decepção é perceber que o verde está apenas na superfície. Sem o sol, a base do gramado vai secando e ele perde a beleza quando as podadeiras o trazem para o tamanho ideal.

Para ser feliz é necessário admitir que o amor é tudo. Confesso que tenho medo dessa conclusão porque vivemos em um tempo que rouba os sentidos da palavra amor, muitas vezes reduzida à idéia de um sentimento que deixa extasiados os casais tomados pela paixão. O amor não deve ser percebido pelos sentimentos que desperta. Concordo com o que pensa Marcel Conche: “o amor tem o caráter de um projeto, cujo fim é, para o ser amado, uma vida feliz porque vivida de acordo com a mais profunda verdade”. O amor não deveria conduzir os indivíduos à alienação e ao estranhamento, mas sim à realização. Visto apenas na perspectiva dos sentimentos que pode gerar, o amor esvazia as pessoas de si mesmas e as leva para um mundo distante, no qual o futuro deixa de existir, posto que o presente fica eternizado na paixão. “Viver não é limitar-se a passar o tempo, ainda que esse fosse bom, mas consumar, tornar-se o que se é virtualmente, o que se é em promessa, é obrar, trabalhar, criar”, arremata Conche.

Recolhendo as metáforas que a natureza nos oferece, eu diria que a paixão é como uma manga rosa: impossível comer sem se lambuzar. Quem chupa manga como deve ser, não recorre a talhares. Devora cada gota, tentando evitar que ela fuja das mãos. O amor não é menos excitante, mas se aproxima muito mais da jabuticaba. A gente pode chupar uma a uma, num ritmo mais sereno, sem se preocupar com o que vem depois. Seriam o amor e a paixão dois caminhos que não se cruzam? Obviamente que não. Quando o canoista desce uma corredeira e chega no remanso, pode decidir voltar e repetir o percurso, pelo prazer de se desviar dos obstáculos e experimentar os movimentos frenéticos da descida. Quem sabe, faça isso por um dia inteiro. Não lhe interessam as águas calmas do rio. Paixão. Mas se a escolha for prosseguir navegando, ele pode descobrir outros prazeres: o silêncio que descortina o canto dos pássaros; as curvas do rio, que revelam surpresas da natureza; o verde das árvores, contrastando com a rudez dos barrancos. Talvez surjam outras corredeiras pelo caminho. A paixão é como um vulcão que não tem hora para cuspir sua lava. O amor é uma chuva fina que não tem pressa de encharcar a terra.

O amor deve ser vivido como uma militância que nos permite compreender o caminho da felicidade. Ele nos faz superar a noção de que devemos colher poções diárias de prazer e nos leva de volta às questões centrais de nossas vidas. É Spinoza quem indica o amor como a causa de tudo: “toda felicidade ou infelicidade consiste somente numa coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos pelo amor”. Tudo que somos, tudo o que fazemos, os ideais que defendemos, dependem do amor. Ninguém é capaz de brigar por aquilo que não ama. Se um artista encontra a felicidade nos palcos, é porque ele ama representar; se um político move mundos e fundos para ter um mandato, é porque ele ama o poder; se um atleta supera as dores em busca de uma medalha, é porque ele ama a glória das conquistas; se um anônimo almeja a fama, é porque ele ama a idéia de vir a ser reconhecido. Na mesma direção, a mãe que não admite os erros do filho, está possuída de amor; o ativista que luta pelos direitos civis ama a liberdade; o soldado que vai para o campo de batalha ama a sua pátria (ou a esperança de que sua coragem seja reconhecida). Sem amor, não há “nenhuma comoção da alma”.

O que valeria a pena amar com o intuito de construir uma vida feliz? É claro que esperamos amar nossos filhos, nossos parceiros, nossos amigos de caminhada. Mas, para além disso, qual é a causa primeira, em função da qual movemos nossas vidas? Por trás de nossos valores pessoais há uma motivação essencial. Spinoza entendia que, para a maioria das pessoas, o supremo bem é percebido nas riquezas, nas honras e nas concupiscências. Eu acrescentaria à lista o poder, uma vez que as honras nem sempre derivam dele. Por recusar admitir que dinheiro, prestígio ou poder sejam os melhores motores para o desenvolvimento de um amor militante, proponho outros três caminhos para a tentativa de uma vida feliz: o amor ao conhecimento, o amor à beleza e o amor a Deus. Esses caminhos nos fazem perceber que o filósofo, o artista e o sacerdote têm o mesmo ofício: apresentar às pessoas o caminho da felicidade.

A filosofia, ainda que desviada de sua rota de tempos em tempos, sobrevive incomodada por uma questão original: a felicidade. Quem pergunta não sou eu, mas Sponville, um filósofo contemporâneo: “Se a filosofia não nos ajuda a ser felizes, ou a ser menos infelizes, para que serve a filosofia?”. Ele mesmo reconhece que não há nada mais relevante que a velha definição de Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Que assim seja. Também a arte, ao desenvolver apelos estéticos que nos fazem admirar a beleza, cria em nós o conforto em relação à existência. Aprender a ouvir Mozart, a enxergar Da Vinci, a contemplar um campo de orquídeas na Serra do Cipó, a ler Garcia Márquez, é aprender a encontrar a beleza que não se despe apenas nos corpos.

Podemos ser felizes amando o conhecimento que a filosofia nos proporciona ou a beleza que a arte nos desperta. Mas, e os religiosos que definem Deus como amor? O que eles sabem sobre uma vida feliz a partir do amor a Deus? O cristianismo tem o amor em sua plataforma de conduta e ética. Entretanto, as Igrejas parecem não se preocupar muito em compreender o amor como condição essencial para a salvação do homem.

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbale que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que distribua todos os meus bens entre os pobres, e ainda que entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. (Carta de Paulo aos Coríntios)

Os textos sagrados nos autorizam a afirmar que não há nada mais importante que o amor. O apóstolo Paulo encerra com um enigma o hino em que discorre sobre o tema: “agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Mas o maior destes é o amor”. Poderíamos dizer que melhor coisa é amar do que ter fé e esperança? Na exegese que fazem do texto paulino, Santo Agostinho e Tomás de Aquino afirmam que sim. Para eles, o amor é a única virtude que faz sentido tanto no presente quanto no Reino futuro. Lá, não será mais preciso a fé, visto que todos estarão completos, como o mesmo Paulo afirma: “quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Porque agora vemos por espelho, em enigma, mas então veremos face a face”. Obrigatório é concluir que, quando formos completos, de nada nos valerá também a esperança

O que pensava Jesus sobre isso? Ele, que não tinha fé nem esperança. É reveladora a conversa que o mestre teve com seus discípulos pouco antes de ser preso e caminhar para a morte. O ambiente era carregado de profunda angústia. Jesus havia revelado que estava de partida. Mas ele tinha a preocupação de deixar os discípulos orientados sobre a virtude que poderia fazer deles uma espécie de gente diferente. Seria a fé? A esperança? Parece que não. Jesus propôs apenas que eles amassem. Assim o Evangelho de João narra: “novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”. Jesus reforçou para os discípulos a convicção de que apenas o amor sem medida poderia distingui-los no meio da multidão: “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”.

Depois de ressucitar e conviver com os discípulos por mais algum tempo, Jesus trava um diálogo revelador com Pedro, escolhido para liderar o grupo. Por três vezes, ele insiste na mesma pergunta: “Pedro, tu me amas?”. A resposta afirmativa não satisfez Jesus. A pergunta repetida deixou o apóstolo incomodado. Jesus não duvidada do amor de Pedro, mas precisava enfatizar que não havia nada mais importante para o líder daquele grupo do que a capacidade de amar.

O amor é a virtude maior do Reino futuro que os cristãos esperam habitar. O amor é a única virtude que pode distinguir os cristãos no tempo presente. Está claro então que o amor é a única ponte entre a nossa existência concreta e a experiência transcendental que pode nos aproximar de Deus. É a partir deste entendimento que se constrói um modelo de espiritualidade baseado na militância do amor.

(Amor nao é sentimento. Sentimento é indicador, é produto. Gostar ou nao.)
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