sábado, 27 de agosto de 2011

Deus e o sofrimento humano


Ed René Kivitz

Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo, porque não evita o sofrimento? Se não o evita, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom.

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: "Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom".

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um "problema insolúvel", devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio "onipotência/bondade" como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras "onipotência" e "bondade" são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus havia sido crucificado num "jogo de empurra" entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristãos havia sido morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência,[i] isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor,[ii] deixou-se matar por eles.[iii] (Eu disse que "Deus abriu mão do exercício de sua onipotência", bem diferente de "Deus abriu mão de sua onipotência").

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou "Deus é amor",[iv] e afirmou que Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que "a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade".[v] Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz),[vi] e nunca o poder de Deus.

Na verdade, "Deus não tinha escolha". Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria cria-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor dá liberdade para que o outro seja livre, inclusive para rejeitar o amor que se lhe quer dar.

Ricardo Gondim me introduziu ao pensamento de Comte-Sponville.[vii] Este ateu confesso (como bom francês) discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: "a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras".

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão.[viii]

Mas você poderia perguntar, porque razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe. Marilena Chauí diz que "o mal é o pecado, isto é, a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram. Sua punição foi o surgimento de outros males: morte, doença, dor, fome, sede, frio, tristeza, ódio, ambição, luxúria, gula, preguiça, avareza. Pelo mal, a criatura afasta-se de Deus, perde a presença divina e a bondade original que possuía. O mal, portanto, não é uma força positiva da mesma realidade que o bem, mas é pura ausência de bem, pura privação do bem, negatividade, fraqueza. Assim a treva não é algo positivo, mas simples ausência da luz, assim também o mal é pura ausência do bem. Há um só Deus, e o mal é estar longe e privado dele, pois ele é o bem e o único bem". Em outras palavras, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos resumiu isso ao afirmar que "para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado". Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus "se diminui", esvazia-se de sua onipotência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos,[ix] e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens.[x]

É uma pena que Epicuro não tenha lido os apóstolos cristãos, não tenha corrido no parque ao lado de Ricardo Gondim, e não tenha ouvido Ariovaldo Ramos pregar, e nem tenha assistido a aula que tive com Jung Mo Sung esta semana.

[i] Carta aos Filipenses 2.6-8[i]
[ii] Evangelho de João 3.16
[iii] Atos dos Apóstolos 2.23
[iv] Primeira Carta de João 4.7
[v] Notas de sala de aula: Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
[vi] 2Coríntios 5.14,15
[vii] Recomendo Comte-Sponville, André, Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995, especialmente o capítulo 18: Amor.
[viii] Evangelho de São Mateus 9.36; 14.14
[ix] Evangelho de São Mateus 5.44,45
[x] Atos dos Apóstolos 14.17

sábado, 20 de agosto de 2011

Pondera tuas veredas


Por Valdemar Figueredo

Quem opta pelo caminho estreito adere a uma guinada radical na vida. Muitas pessoas vivem aflitas porque constatam que estão paradas na esquina e não conhecem o caminho.

Viver é escolher uma direção e seguir. Na Bíblia Sagrada, é muito recorrente a representação da condução da vida através da imagem de um caminho, e o tempo da existência humana como uma jornada, que pode ser longa ou curta. Os obstáculos da vida são tratados como buracos e abismos. A tomada de uma decisão é como dar passos seguros; o arrependimento, como o retorno por uma estrada solitária. A reconstrução de uma cidade é como a pavimentação de uma estrada. O céu, como ruas de cristais e pedras preciosas.

A força dessa imagem também está bem presente na literatura, nas suas diferentes expressões. Para ficarmos com um exemplo, diz o poeta Carlos Drumonnd de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra; tinha uma pedra no meio do caminho; tinha uma pedra; no meio do caminho tinha uma pedra...”. Sendo caminho a palavra-chave nos seus múltiplos sentidos literários, cite-se também o Poeminha do contra, de Mário Quintana: “Todos estes que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... Eu passarinho!”

É fato que uma estrada bem sinalizada e adequadamente pavimentada ajuda quem caminha a percorrer as distâncias e a achar o sentido correto. Muitas pessoas vivem aflitas porque constatam que estão na esquina e não conhecem o caminho. Colocar o pé em determinada estrada define, além do ponto aonde se pode chegar, o cenário com o qual se conviverá pelo caminho. Admitimos que os próximos passos nos levarão a novas e imprevistas situações – contudo, onde estiver a expressão humana, aí haverá o aleatório, o imponderável, o mistério, a surpresa, o fortuito, o acidental.

Na versão do existencialismo filosófico, estamos destinados à liberdade. Isto é, de acordo com a representação da vida com a qual estamos lidando, temos a responsabilidade frequente de escolher caminhos e assumir direções. Há quem se apavore com o desconhecido, mas existem aqueles que encaram os caminhos novos como o próprio fascínio que é viver.

Jesus mencionou dois caminhos opostos: um largo e um estreito. Enquanto o primeiro conduz ao desperdício da vida, o outro conduz à vida plena. No ensino do Mestre, a força atrativa da multidão seduz a muitos. Neste plano, funciona a lógica de que o caminho bom é aquele que exige o menor esforço. Então, basta seguir; nada de ponderação. Não adianta pensar em consequências, uma vez que a pulsação do momento justifica os passos de agora. A multidão é pouco afeita às placas educativas; prefere os letreiros iluminados. Aquele que adere aos passos da multidão não pergunta pelo sentido certo, mas reclama aceitação. Só que quem vive para ser aceito pode chegar ao fim e concluir que não viveu a sua própria vida.

Já o caminho estreito acentua a responsabilidade de cada escolha. Quem o segue jamais perde a noção de si mesmo, ainda que veja os outros que no caminho estão. Jesus não fala do caminho estreito como se fosse martírio autoimposto. A realidade não é encoberta: viver é correr riscos frequentes. Quem opta pelo caminho estreito adere a uma guinada radical na vida. Enquanto na via larga segue-se a multidão, no rumo estreito segue-se aos passos de Cristo.

Quem nunca se sentiu perdido na vida, sem saber a direção, com a impressão de que cochilou e passou do ponto? Pois é nestas horas-limite que olhamos para Deus, erguemos as mãos trêmulas e pedimos: “Guia-nos pelo caminho eterno!”. O grande perigo é continuar seguindo, mesmo quando não se sabe para onde. Os humildes aprendem que retratar-se é melhor do que andar perdido. Seria ótimo se desenvolvêssemos a disposição de apresentar nossa vida a Deus, a fim de que ele a corrigisse sempre que necessário. Todavia, essa postura humilde não encontra eco na vida moderna, em que todos são estimulados a escolher o seu próprio caminho e seguir até o fim, sem olhar para trás nem para os lados.

Aquele que se propõe a seguir a jornada ao lado do Senhor encontra o estímulo certo nas Escrituras: “Confia no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus próprios olhos; teme ao Senhor e aparta-te do mal” (Provérbios 3.5-7). Voltar atrás nem sempre é possível, mas os tropeções que demos não nos deixam derrubados para sempre. E nunca é tarde para atentar ao caminho que se segue: “Pondera a vereda de teus pés, e todos os teus caminhos sejam retos. Não declines nem para a direita nem para a esquerda; retira o teu pé do mal” (Provérbios 4.26,27).

sábado, 13 de agosto de 2011

As Vozes dos Pais


Por Daniel Sampaio

Numa sociedade em rápida mudança, com os adolescentes a socializarem-se fora do quadro tradicional de referência (família e escola) e a viverem experiências novas que os adultos desconhecem (Internet), vale a pena os pais lutarem para que a sua voz seja ouvida? Estou convicto que sim e digo mais: nunca, como agora, é crucial que não desistam, porque a sua possível perda de influência pela chegada da "segunda família" deve levar a novas formas de comunicar e de educar.

O tema foi-me sugerido no debate que se seguiu ao lançamento de mais dois livros de Pedro Strecht , "Final feliz" e "Gosto de ti como és" ( Editora Assírio & Alvim). Nessa altura falei das vozes dos pais juntos dos filhos nos dias de hoje e, sem querer simplificar as ideias lá expostas por vários participantes, resolvi trazê-las para aqui.

A melhor voz dos pais deve ser baixa. É difícil e pouco oportuno gritar o amor e esse deve continuar a ser o sentimento predominante entre pais e filhos. Quantas discussões acabariam mais depressa se todos se habituassem a não gritar e a expressar os seus pontos de vista de modo firme, mas calmo! Depois, convém que seja a voz da não repetição. Ditas as coisas uma vez, não interessa massacrar: ninguém muda só porque houve muitas vezes o mesmo ralho ou a mesma recomendação. Na interacção com filhos adolescentes, os pais repetem sem cessar directrizes educativas que sabem já não ser eficazes; e os filhos respondem com promessas que sabem à partida não ir cumprir.

E a voz do exemplo, claro. A coerência dos pais é vital: se o comportamento dos pais for o oposto do que recomendam o êxito será pouco provável. Se o pai consome haxixe o seu discurso "anti-drogas" será inútil. Não esquecer a voz do poder: sempre que estiver em causa a saúde e a segurança dos filhos, não há que hesitar, não é o momento de negociar! E aí deve entrar a voz da segurança: a imaturidade de muitos pais e a sua identificação romântica com os filhos ao transformá-los em amigos, com o consequente apagamento do fosso intergeracional, tem conduzido a famílias sem limites internos, onde ninguém sabe o seu papel, nem as barreiras que deve respeitar.

A voz da disciplina, na família e na escola, tem de se fazer ouvir a cada momento: não a disciplina do passado, baseada no medo e na sistemática humilhação dos mais novos, mas a disciplina construída através de uma relação de respeito mútuo, a ter como objectivo fundamental não o castigo ofensivo, mas a reconciliação futura e, sobretudo, a experiência do reconhecimento do erro e a procura de alternativas de comportamento.

Há vozes dos pais boas e más, os leitores que perdoem esta linguagem simplista. São vozes más as que fomentam a intriga (por exemplo, quando os pais recolhem informações nos amigos às escondidas dos filhos), a inveja, a culpa ou a acusação. Quando os pais projectam nos filhos os sentimentos negativos que estão a sentir em relação a outras pessoas e os acusam de coisas que só na aparência dizem respeito aos mais novos. Ou quando os pais, dominados pelos seus próprios sentimentos de insegurança, deitam a sua própria fraqueza para cima dos filhos inquietos. São vozes boas: " deves fazer o melhor possível, mas não te inquietes se não fores o melhor"; ou "põe-te no lugar do outro" (a perda deste sentimento do outro é característica de muitas crianças e adolescentes actuais, habituadas a uma gratificação imediata e incapazes de sair da sua posição de autocontemplação). Outra voz boa poderá ser: "vais conseguir, se te esforçares com persistência", porque o incentivo ao esforço continuado é um dos êxitos seguros na educação. E também é uma voz boa " pensa antes de agir": sobretudo os adolescentes agem muitas vezes sem reflectir, nesta sociedade "sensorial" que fomenta o constante sentir em vez de pensar. A frase dos nossos avós " vê lá até onde podes ir" mantém toda a actualidade!

Perante as dúvidas, a indisciplina e insegurança de tanta gente nova, a resposta só pode ser uma: a voz coerente de mais adultos.

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Daniel Sampaior nasceu em Lisboa, em 1946. Médico, especialista de Psiquiatria, coordena no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o Núcleo de Estudos do Suicídio, destinado ao atendimento de jovens em risco de suicídio. O seu trabalho tem sido caracterizado por uma especial atenção aos problemas da adolescência, tendo conduzido muitas sessões de trabalho com professores,
pais e alunos das escolas básicas e secundárias. É autor de vários livros, entre os quais se destacam: "Inventem-se Novos Pais" (1994), "Voltei à Escola" (1996) e, mais recentemente, "Tudo o que Temos cá Dentro" (2000).

sábado, 6 de agosto de 2011

Riquezas


Por Ricardo Gondim

No Dia dos Pais, meus filhos me presentearam com um verso do Fernando Pessoa: “Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentaria nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens”. Como a Cynthia recortou o cartão artesanalmente, eu o guardo como uma relíquia.

Recentemente, um catedrático da Universidade de São Paulo ganhou uma festa de despedida no dia de sua aposentadoria. Na cerimônia, permitiram que o auditório fizesse algumas perguntas e um amigo aproveitou para indagar o que ele considerava a maior riqueza de um homem com mais de setenta anos. O decano respondeu: “A capacidade de discernir entre o que é importante e o que não possui nenhum valor”.

Realmente! A gente chega a uma idade em que carecemos de siso redobrado para não errar mais. O tempo, uma riqueza não renovável, se torna escasso, e precisamos desfrutar a vida com muito cuidado.

Tento segurar os ponteiros para poder acompanhar meus netos em seus momentos mais inocentes. A Gabriela zomba de minha careca cantando: “Eu vi uma barata na careca do vovô...”. O Naran me desafia para lutas homéricas na cama, em que ele é o Super-Homem e eu não posso passar de um reles Homem Aranha, sem direito a me valer da criptonita. O Felipe é quem mais me dá beijo no mundo e eu me sinto amado como nunca. Eles se tornaram mais importantes que os aplausos aduladores de quem não me conhece, mais valiosos do que as honrarias plásticas que nada significam.

Hoje, recuso-me a adiar qualquer oportunidade de celebrar a vida ao lado da mulher de minha mocidade. Ela é minha Dulcinéia, que caminha ao meu lado e me defende como uma leoa. Sou feliz em ver como ela, obstinadamente, insiste em não permitir que nosso dia-a-dia se torne monótono, zelando para que nosso amor não esmoreça. Nunca entristecemos ao mesmo tempo. Quando ela se cansa, eu a ajudo, e quando me deprimo, acolho suas palavras, que me afirmam carinhosamente.

Depois de tantas decepções, guardo os poucos amigos que me restam no lado esquerdo do peito. Aprendi a valorizar a fidelidade como uma virtude raríssima; sei ser grato pela mão estendida; sinto-me endividado pelo amor gratuito. Como é bom tomar café com pão de queijo perto de quem a gente sente liberdade para rir, chorar e sonhar.

Aprendi a olhar para Deus com menos cobranças religiosas. Sinto que Ele abre as portas de sua casa como um hospedeiro que unge a minha cabeça com óleo e prepara uma mesa na presença de meus inimigos. Abandonei a presunção infantil de exigir que o Senhor me dê uma vida blindada ou que Ele me privilegie com favores especiais. Hoje, desejo municiar-me com os valores do Reino, com as verdades de Jesus para enfrentar a vida com coragem.

Desejo ler as Escrituras com a credulidade infantil, com a sensibilidade poética, com a honestidade bereana e, principalmente, com a verdade do Espírito Santo.
Cheguei à idade em que não me impressiono mais com os arroubos pretensiosos dos religiosos ufanistas. Dou de ombros para os títulos, para as estatísticas elásticas que provam uma dotação carismática. Desdenho o oportunismo do mercadejador de esperanças, que usa o sagrado para enriquecer. Não respeito quem enxerga a igreja como um nicho de mercado.

Existem riquezas que outrora não valorei, mas que agora são importantíssimas. Ler um bom livro e ouvir uma música calma se tornaram valores preciosos. Tardiamente, passei a admirar os tenores eruditos, os poetas contemporâneos e os cronistas que registram o cotidiano.

Viver me enche de entusiasmo. Não tento mais matar o tempo. Quero sorver a vida com tudo o que ela tiver de bom e de ruim. Como um colecionador de borboletas, procurarei guardar, daqui para a frente, todos os meus momentos em estojos de cristal.

A vida é rara, só a experimentamos uma vez. Devemos tratá-la como o dom mais sagrado que recebemos de Deus. Quem não souber valorizá-la, antecipa o inferno. Portanto, meu versículo bíblico predileto passou a ser: “Ensina-me a contar os meus dias, para que meu coração alcance sabedoria” (Sl 90.12).

Soli Deo Gloria.
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