domingo, 28 de março de 2010

Graciosa


por Eduardo Nunes

Tenho um dom. Nasci e certamente morrerei um homem desafinado. Não um pouco. Completamente. Na adolescência, quis participar de um coral. No teste de voz, antes de terminar a primeira linha, o maestro me disse: - Baixo. – Legal! Posso ir para a última fileira, com os outros baixos? O maestro repetiu. – Não. Baixo, Cante bem baixo para não atrapalhar ninguém. Acabava ali minha carreira de cantor.

Aprendi que não cantar é um dom. E tem muitas utilidades. Ninguém faz uma criança dormir mais rapidamente do que eu. Se não chorarem antes, elas fecham os olhos só para que eu pare de cantar. Pergunte aos meus filhos. Eles desenvolveram a habilidade de pegar no sono em segundos. Tudo para não serem torturados pelo canto paterno.

Minha notável incapacidade de cantar também me força a ficar quieto, o que no meu caso é algo raro, por pelo menos um momento. Durante o “período de louvor”, ou canto coletivo dos cultos religiosos. Tudo bem, às vezes dublo. Isto evita que pensem que sou visitante e tentem me converter. Já participei de muitos tipos de cultos. Alguns reverentes e ritualísticos. Outros enfáticos e caóticos. Estilos distintos de música. E eu sempre calado.

E assim, mudo por décadas, desenvolvi a habilidade de voyeur da fé. Escolho meu lugar na igreja não para ver melhor ao pregador. Gosto dos bancos estratégicos para observar tudo o que não está no palco (ou púlpito, nas igrejas mais tradicionais).

Durante o canto coletivo, a maioria tenta não ver o que está ao seu redor. Uns miram o céu, como que vislumbrando através do teto da igreja. Outros fitam os dirigentes ou músicos. Há aqueles que simplesmente fecham os olhos. Eu abro os meus. E vejo muito. Expressões de fé, coreografadas nos rostos e corpos dos que cantam.

Sofrimento. Compenetração. Peso e alívio. Animação e reverência. A música converte passivos ouvintes em protagonistas. Cremos mais facilmente no meio dos que conosco crêem. Dúvidas gostam da reflexão solitária. No grupo, é momento de acreditar. Contagiados em uma experiência coletiva e, ao mesmo tempo íntima. Muito aprendi com aqueles que cantam.

Confesso. Provavelmente aprendi mais com minha espia silenciosa dos que cantam do que com as letras das músicas e, mesmo, com o conteúdo dos sermões. Talvez, para mim, a principal mensagem na igreja não venha da frente, chega pelos lados.

De todos os “sermões” que vi ao meu redor, há um que não creio que vá esquecer. A banda embalava um hino tradicional em um novo arranjo. A letra falava da graça de Deus. Dos sofrimentos e da ajuda divina. Ao redor, todos cantavam. Cada qual expressava a parcela de dor que lhe cabe. Algumas muito maiores do que as outras. A dor não é distribuída com equidade. Em minha mudez habitual, observava.

Perto de mim, um grupo de 4 crianças. Igrejas modernas segmentam públicos de culto (há serviços para crianças, jovens, etc.) e assim elas eram uma exceção. Visitantes, reconheci sua acompanhante de uma reunião há anos atrás. Mulher de traços fortes, líder de uma casa abrigo para crianças que vivem com o vírus da AIDS. Trazia algumas crianças do abrigo para o culto. E uma delas, uma menina em seus 6, 7 anos foi a “pregadora” daquela manhã.

A banda liderava “a sua graça me basta”. A menina saiu da fileira, veio ao corredor e começou a dançar. Rodava seu vestidinho branco, que lembrava uma infância que um dia foi também minha. Todos compenetrados seguiam. “A sua graça é maior do que a vida”. A menina agora gargalhava. Cantava e tonta dos rodopios, quase caía. E eu vi. Lá estava, a graça.

A coreografia da menina me ensinou o que os anos de Teologia não conseguiram. Conceito encarnado nos passos inebriados de graça. A menina ria porque estava viva. Eu chegara lá ocupado com problemas irrelevantes. Egocentricamente orbitando meus interesses. Implicante com problemas mínimos. Sem graça, em resumo. Racionalizava sobre os motivos da dança daquela menina, provavelmente órfã e/ou abandonada, sem posses, nascida com uma enfermidade incurável que lhe forçava a uma rotina de medicamentos e cuidados. E ela dançava, enquanto eu não entendia. A “Graça e Maior do que a vida”. Eu tentava compreender. Ela simplesmente sabia.

Por analisar demais, até aquela manhã, não sabia que a graça não marcha, ela dança. Sorri indisciplinada. Irreverente e quase debochada dos “sem-noção-da-graça”.

Engraçada a Graça. Seus movimento graciosos, não pregam, vivem a liberdade. A mensagem da menina me dizia: Não tente entender a graça, dance com ela.

Ao final do sermão oficial, do qual não me lembro o tema, fui conversar com minha “professora de pedagogia dançante”. - Você dança bonito? Qual é seu nome? – Eu me chamo Graça, sorriu e saiu correndo para dançar no palco/púlpito.

Depois, ainda há os que dizem que Deus não tem senso de humor.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Quero ser mais humano!

por Ricardo Gondim

É curioso como, com o passar dos anos e o aproximar da velhice, nossos valores mudam. Posições que ambicionávamos, conquistas que valorizávamos e pessoas que nos impressionavam, perdem seus encantos. Vamos fechando portas atrás de nós, para euforias juvenis e idealismos inconseqüentes. Já não invejamos o triunfo dos insolentes ou o sucesso dos ufanistas. Hoje, ainda sem ser velho, já consigo sentir indiferença para os sonhos mirabolantes dos messiânicos. Confesso que perdi, inclusive, a vontade de ter a última palavra sobre qualquer assunto e não me empolgo com debates que só dão uma falsa sensação de prestígio.

Esse processo começou, quando enfrentei uma crise, lá por volta dos meus quarenta anos. A própria consciência de que vivia na meia idade, me fez desistir de querer ser herói, conquistador, eleito especial ou semi-deus. E de lá para cá, caminho cada vez mais consciente, que muito dos meus esforços lendo, estudando, trabalhando, madrugando e virando noites, para “não perder tempo”, eram vaidade e correr atrás do vento. Olho para trás e percebo que não foi de minhas poucas conquistas ou dos reconhecimentos humanos, que obtive meus melhores contentamentos. Vieram do amor de minha família e de amigos verdadeiros; gente que não temia partilhar o mesmo jugo que eu.

Assim, fiz alguns ajustes. Redirecionei minha leitura bíblica. Mais do que saber os detalhes exegéticos ou técnicos, ansiei que a Palavra me levasse a uma relação mais íntima com Deus. Reli a Bíblia de capa a capa, procurando o coração paterno de Deus. Dialoguei com pessoas que tratam da Espiritualidade Clássica. Recompus minha vida devocional. Aprendi sobre oração contemplativa e redescobri a meditação bíblica. Devorei alguns clássicos como “A Imitação de Cristo” de Tomás de Kempis, “A Volta do Filho Pródigo” de Henry Nowen, “A Montanha dos Sete Patamares” de Thomas Merton e o “Schabat” de Abraham Joshua Heschel. Eles e outros se tornaram meus mentores nessa nova busca interior.

Talvez, a maior descoberta que faço, nesse tempo que antecede o outono de minha vida, é que minha maior vocação é tornar-me mais humano. Desejo aprender a ser generoso e sereno. Almejo rir, risos contagiantes; quero amar coisas simples e contemplar mais a natureza; saber me deliciar com arte; brincar com crianças, ler poemas e ouvir a melhor música. Preciso ser mais empático com o pobre, acolher o perdido e dar minha mão para o abandonado.

Nessa jornada espiritual, perdi o medo de me desnudar e mostrar vulnerabilidade. Outrora, eu temia a censura daqueles que poderiam se escandalizar com minha fragilidade. Tentei, muitas vezes, impressionar as pessoas com discursos valentes, quando, inseguro, pedia que Deus segurasse minha mão. Receava que algum psicólogo detectasse disfuncionalidades em mim e na minha família. Acreditava que, se alguém diagnosticasse meu envolvimento no evangelho como uma fuga, perderia toda credibilidade. Evitava contatos íntimos, para que as pessoas não notassem que eu não era tão “resolvido”, como demonstrava.

Na mitologia grega as sereias eram criaturas de extraordinária beleza e de uma sensualidade irresistível. Quando cantavam, atraíam os navegantes que não conseguiam pelejar contra seu poder de sedução. Obcecados por aquela melodia sobrenatural, os pilotos arremessavam seus navios contra as rochas da ilha, naufragavam, e as sereias devoravam os tripulantes. Os gregos relatam que apenas dois conseguiram vencer o encanto de inimigas tão terríveis. Orfeu, o deus mitológico da música e da poesia, encontrou um recurso. Quando sua embarcação aproximou-se de onde estavam as sereias, ele salvou seus parceiros, tocando uma música ainda mais doce e envolvente do que aquela que vinha da ilha. A outra solução foi encontrada por Ulisses. O herói da Odisséia não possuía talentos artísticos. Sem dons, sabia que não venceria as sereias. Reconhecido de sua fraqueza e falibilidade, concebeu outro plano. No momento em que sua embarcação começasse a se aproximar da ilha sinistra, mandaria que todos os homens tapassem os ouvidos com cera e que o amarrassem ao mastro do navio. Depois que encarou sua fraqueza e incapacidade de enfrentar as armadilhas das sereias, rumou para a ilha conforme o plano. Do mesmo modo, deu ordem aos tripulantes: mesmo que implorasse para que o soltassem, as cordas deveriam ser apertadas ainda mais. Quando chegou a hora, Ulisses foi seduzido pelas sereias como previra, mas seus marinheiros não o libertaram. Quase louco, pedindo para ser solto, passou incólume pelo perigo. O relato mitológico termina afirmando que as sereias, decepcionadas por haverem sido derrotadas por um simples mortal, afogaram-se no mar. O que salvou Ulisses não foi a percepção de sua superioridade, mas a consciência de sua fragilidade. Ele não tentou enganar a si mesmo. Eu também não quero me iludir com os meus dotes órficos. Dependerei que meus amigos me amarrem aos mastros para não ceder aos cantos sirênicos..

Assim, descanso. Sinto-me livre para afirmar que ainda estou em construção. Sou um projeto inacabado e não escamotearei minhas ambigüidades. Agora, quando me sentir cansado, terei liberdade de desabafar como Jesus: “Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei com vocês? Até quando terei que suportá-los?”. (Mateus 17.17) Quando precisar lamentar, lamentarei, igual a ele, quando, triste e angustiado, disse: “A minha alma está cheia de tristeza até a morte”. (Mateus 26.37). Quando tiver vontade de rir, rirei e dançarei de alegria.

Hoje, já não me importo de parecer incoerente ou politicamente incorreto. Dizem que os pensamentos dos anciões tendem ao enrijecimento e que os velhos resistem mudar de opinião. Busco não me engessar, apegado às minhas velhas idéias e indiferente às novas. Quero seguir o exemplo de Jesus que, em nome da vida, não temeu contradizer as rígidas normas religiosas – Mateus 12.2-7; não respeitou os preconceitos sociais, quando conversou com prostitutas e acolheu gentios – Mateus 11:15-19; não teve receios de voltar atrás em sua palavra, para atender uma mulher siro-fenícia – Marcos 7.24-30. Permanecerei alerta para não me tornar um dogmático e faccioso; cego por minha obstinação.

Recuso encarnar o personagem de Álvaro de Campo (heterônimo de Fernando Pessoa) no poema “A Tabacaria”. A experiência do poeta foi acordar do próprio passado, como um pesadelo e perceber que perdeu contato com a sua própria alma. Viveu uma mentira da qual não pôde escapar. Perdido de si mesmo, não se encontrou mais.

“Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido “.

Anseio por uma humanidade não fingida, que não tenta transformar a mensagem do evangelho em um espelho mágico, que fala o que desejo ouvir. Lerei a Bíblia também contra mim. Permitirei que, como espada, ela penetre no mais profundo de meu ser, discernindo, inclusive, as intenções nebulosas de meu coração.

Atenderei a admoestação do profeta Miquéias (6.8): “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”.

Acredito que vem dele, minha teimosia de acreditar que não precisamos esperar morrer para começar a viver. E como passamos rapidamente, sugiro que comecemos já.

Soli Deo Gloria.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Ser Mulher

Ser mulher

por Esther Carrenho

O primeiro se deu quando ainda morava na zona rural. Eu era pequena e já ouvia minha mãe dizer que menina não precisava ir à escola. Afinal, dizia ela, para quê aprender a ler e estudar se o papel da mulher resumia-se a ficar em casa cozinhando, lavando roupas e cuidando de crianças? Aquilo me marcou muito.

Comecei a desconfiar que, pelo menos na ótica da minha mãe, era mais vantajoso ser homem. Mas, para minha felicidade, meu pai não pensava assim e decretou que seus filhos só sairiam da escola quando estivessem, ao menos, alfabetizados. Percebi, aliviada, que para ele meninos e meninas – e, por extensão, homens e mulheres – tinham o mesmo valor.

O segundo aconteceu muitos anos depois, na década de 1980. Já estava casada e com dois filhos, um menino e uma menina. Na época, os sermões em muitas igrejas giravam em torno da família e dos diversos papéis desempenhados no lar. Mas sempre que eu ouvia sobre as funções da mulher, sentia certo mal estar, cuja natureza não conseguia definir direito. Só percebia que era uma sensação de falta, mesmo tendo certeza de que, diante de Deus, a mulher é diferente do homem, mas não inferior.

O nobre, naqueles anos, era a mulher se identificar com a frase: “Sou esposa e mãe.” Eu não via nada de errado naquilo, afinal eu era casada e tinha filhos. Mas sentia falta de alguma coisa. Um dia, enquanto via minha filha de 10 anos brincando no gramado de casa, o nó se desfez. Olhei para ela e falei com meus botões: “E se ela não se casar? Ou se, mesmo casada, não gerar filhos?”

Naquela conversa entre eu e eu mesma, compreendi que realmente falta algo na identidade da mulher que vai além do estado civil e da capacidade biológica de gerar e criar filhos. Só que a sociedade está impregnada de mensagens desvalorizando e sugerindo que a mulher é inferior. Basta ver que a publicidade usa e abusa do corpo feminino e da sua sexualidade na divulgação de tudo quanto é produto. E muitas mulheres se submetem, muitas vezes inocentemente, a esta exploração sem se dar conta que estão cooperando com a humilhação, não apenas de si mesmas, mas de todo o gênero feminino. E o que dizer, então, das diversas situações degradantes a que as mulheres são submetidas em pleno século XXI?

Paul Tournier, psiquiatra suíço que muito influenciou os cristãos brasileiros, defendeu a idéia de que a mulher tem o sentido de pessoa muito mais apurado que os homens. Naturalmente, elas se inclinam mais para as pessoas, enquanto os homens, em sua maioria, se devotam mais às coisas. Ele compreendia que, se a mulher cumprisse sua missão, a civilização poderia ser curada de sua frieza e da indiferença com que trata os desprotegidos e indefesos. Na percepção dele, a mulher já provou do que é capaz, mas tem se submetido aos critérios masculinos, mesmo nos espaços por ela conquistados. Isto é, mostrou sua capacidade – mas deixou de lado a parte específica da sua identidade e passou a imitar o homem.

O valor da mulher é resgatado com o advento de Cristo. Deus se fez gente e dependeu de um útero para nascer neste mundo e de seios maternos que lhe dessem sustento. Em todo o ministério de Jesus, ele fez questão de aceitar e reconhecer o valor da participação da mulher. Ao longo de sua trajetória neste mundo, o Filho de Deus protagonizou vários episódios ao lado de mulheres.

Ele curou uma mulher com hemorragia uterina, doença exclusiva do sexo feminino; ressuscitou uma menina; gastou tempo ensinando Maria de Betânia, que era solteira, mesmo que a lei judaica só permitisse o ensino para os homens; aceitou o presente e os gestos de gratidão da mulher tida por todos como prostituta; não julgou aquela que foi flagrada em adultério, e amorosamente ainda a convidou a uma mudança de vida; e não teve pudores em revelar-se como Messias à samaritana do poço, uma mulher discriminada não apenas por sua origem, mas também porque já estava em seu sexto relacionamento conjugal.

Diante do exemplo de Jesus, podemos reconhecer e acreditar no valor intrínseco da mulher pelo que ela tem de singular e único. Pelo potencial específico e inigualável que se expressa através da profissão, das habilidades artísticas, da atividade religiosa, do voluntariado e do envolvimento político – e também pelo seu desempenho no próprio lar, como companheira do homem e como mãe. E, embora a identidade da mulher não dependa exclusivamente do casamento ou da geração de filhos, é claro que a parceria conjugal e a maternidade podem acrescentar e enriquecer suas experiências de vida e contribuir para sua maturidade.

Contudo, o valor da mulher pode e deve ser cultivado e desenvolvido independentemente de sua condição, pois ela, como todo ser humano, tem significado em si mesma como ser criado à imagem e semelhança de Deus.

O relato bíblico da Criação mostra que o Senhor delegou ao homem e à mulher a tarefa de cultivar e dominar a terra. Eu acho que, no plano divino, todas as decisões e atitudes humanas devem ser tomadas levando em consideração a ótica masculina e a feminina. Os dois gêneros precisam caminhar juntos – e aprender mutuamente. Os homens precisam considerar e dar espaço para a contribuição da mulher; e ela precisa apenas ser mulher!

Esther Carrenho, teóloga e psicológa clínica.
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