domingo, 29 de abril de 2012

Martin Luther King Jr.

Por Raimundo Barreto

Publicado em 15/1/2012



Martin Luther King Jr. nasceu em 15 de janeiro de 1929 em Atlanta, no sul dos EUA, na família de um renomado pastor batista. Tendo crescido numa família de classe média, King não experimentou as formas mais brutais de preconceito racial e estudou em boas escolas. Depois de estudar sociologia, King foi para o seminário e no segundo ano de seu curso de Bacharel em Divindades foi ordenado ao ministério e se tornou pastor assistente de seu pai, na Igreja Batista Ebenézer, em Atlanta. Depois doutorou-se, recebendo o Ph.D. em teologia pela Boston School of Theology. Em 1954, King assumiu o ministério pastoral da Igreja Batista da Avenida Dexter, em Montgomery, capital do Alabama. Depois de um ano de pastorado ali, ele se viu, de repente, lançado no centro de alguns eventos que não somente transformariam a sua vida para sempre, como também dariam início ao que ficou conhecido como o movimento pelos direitos civis nos EUA.

Em dezembro de 1955 uma jovem senhora negra chamada Rosa Parks voltava para casa depois de um dia de trabalho regular numa loja de departamentos onde ela tinha passado todo o dia em pé, trabalhando como vendedora. Ela embarcou no ônibus, por trás, como a lei mandava que os negros fizessem, e sentou-se nas poltronas reservadas para os negros, logo depois dos assentos dos brancos. Pouco depois dela ter se sentado, o motorista disse que ela deveria se levantar para dar lugar a alguns passageiros brancos que tinham embarcado depois dela, uma vez que todos os outros assentos reservados aos brancos já estavam ocupados. Ela se recusou a fazer isso e acabou presa, pois havia uma nova lei na cidade que obrigava os negros a cederem seus assentos aos brancos caso a parte reservada a estes já estivesse ocupada. Rosa Parks não foi a primeira pessoa a ser presa em Montgomery por isso, mas a sua prisão foi o caso que maior repercussão teve, e que acabou por mobilizar a liderança negra da cidade.

Houve, então, como resposta a esta prisão, uma mobilização propondo o boicote dos ônibus até que houvesse alguma garantia de melhor tratamento dos negros no transporte público. Os objetivos eram bem simples, e a princípio não passava pela cabeça de ninguém reivindicar através daquele movimento o fim da segregação racial numa esfera mais ampla. No entanto, o protesto que pensava-se duraria poucos dias se extendeu por longos onze meses, culminou com a conquista do fim da segregação racial nos transportes públicos urbanos em Montgomery e incendiou o movimento pelos direitos civis, que veio a se espalhar por todo o sul dos Estados Unidos (1).

Martin Luther King, Jr. descreve o evento da prisão de Rosa Parks como um acontecimento divino, fruto do "espírito dos tempos". Depois de tanto tempo de maus tratos e humilhações, era chegada a hora na qual o cálice da resistência ao mal tinha se enchido. A população negra de Montgomery entendeu que era hora de dar um “basta!” àquela situação. King foi escolhido como porta-voz e líder e foi nessa condição que ele começou a se deparar com certas questões éticas que o forçariam a uma reflexão maior sobre todo o movimento. De acordo com seu próprio relato, tudo começou a partir do momento em que um jornal da cidade publicou um artigo dando a entender que os negros estavam propondo o uso dos mesmos métodos usados pelos conselhos de cidadãos brancos — grupos criados para preservar a segregação racial e o direito dos brancos — no boicote aos ônibus em Montgomery. Esses conselhos, além de manipularem as leis e os tribunais em favor próprio, usavam métodos de terrorismo, intimidação, ameaças físicas e represálias econômicas contra qualquer um que ousasse protestar contra as leis que garantiam a segregação racial. Eles costumavam usar boicotes, não somente para pressionar suas vítimas, mas também para, se possível, arruiná-las.

Este tipo de comparação incomodou muito a King e levou-o a questionar seriamente a natureza do boicote aos ônibus. Entre muitas questões que precisavam ser respondidas, King indagava sobre a própria natureza do movimento. Eles estavam seguindo um curso ético de ação? O boicote não seria uma abordagem negativa para a solução do problema? Eles não estavam de fato usando os mesmos métodos dos conselhos de cidadãos brancos? Será que fins morais justificariam meios imorais? A partir de suas reflexões sobre questões como estas, King e seus companheiros procuraram elaborar um método para opor o racismo que fosse efetivo politicamente, mas também consistente tanto teológica como eticamente (2).

O pensamento de King se desenvolveu a partir das situações diárias que ele tinha de enfrentar. Preocupado com a conotação negativa da palavra “boicote” e influenciado pela leitura de um livro chamado Ensaio Sobre Disobediência Civil, de Henry David Thoreau (1817-1886), King concluiu pela validade ética de se usar o método da resistência pacífica através da não-cooperação com um sistema injusto para combater o racismo, interpretando o seu método inicialmente como uma recusa em cooperar com o mal. Seu objetivo não seria levar a companhia de ônibus à falência, mas sim trazer justiça ao sistema de transporte urbano.

Para King, aceitar o mal passivamente seria estar tão envolvido com o mal quanto aqueles que diretamente o perpetuavam. Em suas próprias palavras, “quem aceita o mal sem protestar contra ele, está na verdade cooperando com ele” (3). A não-cooperação com um sistema injusto e opressivo era, ainda, para King, uma questão não somente de libertação do negro ou do oprimido em geral, mas também de redenção moral do opressor (4). Ele afirma que normalmente o opressor não toma consciência do mal envolvido em sua opressão enquanto o oprimido a aceita passivamente. A não-cooperação com o mal é, portanto, um dever moral: “Para que o homem reto seja verdadeiro para com sua consciência e para com Deus, ele não tem outra alternativa a não ser se recusar a cooperar com um sistema maligno" (5). King aqui já demonstra perceber que o problema do racismo não pode ser visto isoladamente, e que há um elemento opressivo estrutural pervadindo todo o sistema, que precisa ser denunciado e resistido.

Numa outra situação prática, depois de sofrer várias pressões para desmobilizar a comunidade negra e o ato massivo de não-cooperação em Montgomery, King se viu diante de mais um dilema. Como poderia reconciliar um discurso de resistência ao mal e de luta para recuperar o respeito próprio com uma ação moderada e desprovida de ódio e ressentimento? A reflexão sobre essa questão o levou a temperar o discurso de resistência ao mal com uma forte afirmação da doutrina cristã do amor. Ele escolheu o método da resistência não-violenta desenvolvido por Gandhi como base para sua ação militante e afirmou que o amor deveria ser o ideal regulador de tais ações. Sua admiração por Gandhi vinha desde os tempos de seminário, mas a adoção do método como um princípio da luta do movimento em si, bem como um princípio pessoal, só aconteceu devido a sua exposição ao método da resistência passiva já durante o boicote em Montgomery e a uma experiência pessoal (6). Desde então era comum ouvir King explicar a ênfase no amor e na não-violência com a seguinte afirmação: "Jesus me deu a motivação e Gandhi o método".

Vale salientar aqui que até então King não podia ser considerado um pacifista ou adepto da não-violência. Garrow registra que quando as ameaças contra os principais líderes do movimento e suas famílias se intensificaram, King chegou a adquirir um revólver para proteger sua família (7). E, de acordo com seu próprio relato, foi uma experiência pessoal com Deus — a qual ficou conhecida como a experiência da cozinha — que definiu de uma vez por todas a sua convicção quanto a adesão à não-violência, não simplesmente como um método para o boicote, mas, mais ainda, como um princípio de ação e de vida para ele (8). Essa experiência foi repetidamente citada por King como um marco em sua vida, mas nunca com o significado de uma conversão religiosa. No entanto, essa experiência reflete a influência do personalismo sobre King, bem como sua formação evangélica.

O que impressionou bastante King no método de Gandhi foi que, enfim, ele encontrou alguém que tornava a ética de amor ensinada por Jesus relevante para a transformação social. Desde os tempos de seminário, King tinha sido bastante influenciado pelo pensamento de Reinhold Niebuhr e, para ele, até então, ninguém tinha sido capaz de responder à dura crítica de Niebuhr ao pacifismo e à ética baseada no amor. Para Niebuhr, ambas as ênfases eram ineficazes no contexto social, e até irresponsáveis, especialmente em situações de tirania e totalitarismo. A conclusão a que King tinha chegado, influenciado por Niebuhr, era que "a ética (de amor) de Jesus era efetiva somente em relações individuais". A filosofia do 'dar a outra face' e do 'amar os inimigos' só era válida na resolução de conflitos individuais, mas quando se tratasse de grupos sociais, raciais ou nações, uma abordagem "mais realística" se fazia necessário. Após conhecer o método da não-violência de Gandhi, no entanto, King concluiu que Niebuhr estava equivocado, e afirmou que descobriu na ênfase gandhiana no amor e na não-violência o método que vinha buscando há tempos para uma reforma social (9).

Na medida em que o movimento avançava, King cada vez mais percebia que diferentes formas de injustiças, além da injustiça racial, precisavam também ser desafiadas pelo movimento, pois todas elas estavam interligadas. Ao se deparar com a pobreza em alguns lugares nos EUA, e também na Índia, King concluiu que a exploração econômica era irmã gêmea da injustiça racial, e que um branco pobre era alguém tão explorado quanto um negro. Ao pensar nessa direção King também refletia a influência do pensamento de um outro ministro batista sobre ele, que foi Walter Rauschenbusch, um dos principais líderes do movimento da virada do século dezenove conhecido como o Evangelho Social. Apesar de reconhecer as fraquezas do pensamento de Rauschenbusch (10), King admite que a influência do Evangelho Social sobre ele foi muito importante no sentido de ajudá-lo a compreender que a mensagem de Jesus Cristo lida com o ser humano como um todo, inclusive com o bem estar material das pessoas, e não apenas com o espiritual. Ele diz:

Tem sido a minha convicção desde que li Rauschenbusch que qualquer religião que se preocupa com as almas do homens, mas não está preocupada com as condições econômicas e sociais que marcam a alma, é uma religião moribunda, esperando somente o dia de ser sepultada (11).

Mesmo tendo uma visão que pode ser identificada como socialista (12), King foi sempre crítico do marxismo e rejeitou inteiramente a sua interpretação materialista da história. No entanto, ele ouviu com atenção os desafios do marxismo para os cristãos, especialmente no que concerne à justiça social. Marx, segundo King, lhe ajudou a perceber o perigo de se ter o lucro como motivação principal em um sistema econômico. Para King, em última instância, nem o capitalismo nem o marxismo representam soluções para os problemas sociais do mundo, pois ambos, ao seu ver, apresentam apenas meias verdades. O capitalismo, segundo ele, falhou em perceber a dimensão social da vida, enquanto que o socialismo deixou de ver sua dimensão pessoal e individual. King, então, adotando a dialética hegeliana, tão presente no seu pensamento, apresenta o Reino de Deus como a síntese que reconcilia as verdades desses dois sistemas (13). Essa síntese, por outro lado, numa linguagem não teológica e dentro dos limites históricos, algumas vezes apareceu como a proposta de uma democracia social.

Apesar do sonho, tão constantemente descrito em seus discursos e sermões, de uma América e um mundo menos injusto, King nunca se deixou levar por um falso idealismo. E a influência de Reinhold Niebuhr na sua formação teológica foi fundamental para que ele nunca se rendesse às ilusões de um otimismo superficial quanto à natureza humana que poderia produzir esse falso idealismo. Apesar de manter uma crença básica no potencial do ser humano para o bem, King reconhece que Niebuhr o ajudou a não esquecer o potencial do ser humano para o mal, particularmente o potencial coletivo para o mal. A influência da ética social de Reinhold Niebuhr sobre King foi tão grande que houve um tempo em que ele quase caiu na armadilha de aceitar acriticamente tudo o que Niebuhr escrevia (14). Contudo, à medida que ele foi desenvolvendo a sua própria ética, King foi capaz de manter as importantes contribuições de Niebuhr, principalmente os seus insights quanto à natureza humana e o comportamento das nações e dos grupos sociais nas relações entre moralidade e poder, e ao mesmo tempo criticar coisas como um certo pessimismo de Niebuhr na sua compreensão do ser humano e a sua interpretação negativa do pacifismo (15). Aqui, mais uma vez pode-se perceber o uso que King faz da dialética como método para se posicionar entre dois pensamentos aparentemente opostos, surgindo com uma síntese na tentativa de reconciliá-los.

Uma outra importante característica de King, adquirida provavelmente pelo seu convívio de perto com grandes pregadores negros, sendo ele filho e neto de pastores, era uma capacidade excepcional de colocar suas ideias em forma sermônica e dramática. Assim ele conseguia relacionar as teorias sociais por trás de seu pensamento com a história bíblica e a tradição religiosa do seu povo. King sabia apelar para motivos seculares em seus discursos públicos, bem como para motivos religiosos em seus sermões. Nos discursos públicos, era comum vê-lo apelando aos ideais democráticos dos EUA, bem como à constituição americana e à declaração de independência. Nos sermões, as histórias e passagens bíblicas eram o seu ponto de partida e de conexão com os seus ouvintes (16). No seu uso e interpretação do texto bíblico, King "enfatizava a convergência da sua fé religiosa em particular, com os mitos fundacionais operando na cultura Americana" (17) King também, como podemos notar, tinha uma capacidade excepcional de manter os grandes pensadores que o influenciaram em conversação com as suas experiências diárias em meio às situações concretas que enfrentava, e ao mesmo tempo conseguia traduzir os princípios do seu pensamento para a linguagem popular, tanto secular quanto religiosa. Essa característica foi o que fez com que o pensamento dele tivesse um impacto sem precedentes na sociedade americana.

A última fase do desenvolvimento do pensamento de King começa exatamente com seu "batismo mundial," que se torna definitivo a partir do reconhecimento internacional de sua luta com o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, e com o crescente desencantamento em relação à sua nação. A maior intensificação da guerra no Vietnam, paralelamente ao descalonamento da guerra à massiva pobreza, tanto nos guetos das grandes cidades americanas, quanto nos países abaixo do equador, levaram King à denúncia profética mais intensa — para muitos, mais radical — das políticas internas e externas do governo americano na segunda metade da década de 1960. Ele, como um profeta, proclamava o julgamento e a indignação de Deus contra uma nação que a despeito de sua riqueza e poder, estava cega para a justiça dentro de casa e indiferente à paz mundial, a qual, para ele, só poderia ser obtida com mudanças profundas na política externa americana. Tudo isso, juntamente com as constantes e violentas revoltas dos negros no norte do país, o levaram a falar cada vez mais no "pesadelo americano." Funcionando como uma consciência moral para sua nação, King não se preocupou com uma possível perda de popularidade, de apoio político e até de sua própria vida, em função de suas constantes críticas à guerra. Exercendo o papel profético característico do pregador nas igrejas negras, ele disse num de seus sermões:

Eu não me importo com quem não gosta do que eu digo sobre isso. Eu não me importo se alguém me critica num editorial. Eu não me importo com a forma como uma pessoa branca ou negra me critica. Eu vou manter-me apegado ao que é melhor. Em alguns momentos a covardia me pergunta: "Isso é seguro?" A conveniência me pergunta: "É político?" A vaidade me pergunta: "É popular?" Mas a consciência me pergunta: "É correto?" E chega o momento quando um verdadeiro seguidor de Jesus tem que tomar uma posição que não é nem segura, nem política, nem popular, mas ele tem que tomar aquela posição porque é a coisa certa a ser feita naquele instante. De vez em quando nós cantamos uma canção sobre isso. "Se você está certo, Deus irá lutar a sua luta". Eu vou me manter firme junto ao que é melhor nesses tempos maus (18).

A despeito de toda a sua desilusão por causa da determinação do seu governo de continuar a guerra no Vietnam e continuar negligenciando a crescente situação de pobreza nos países do sul (19), e apesar de suas palavras duras e de condenação para com sua nação, King continuou afirmando o sonho, que agora não era mais um sonho americano apenas, e sim um sonho envolvendo toda a humanidade. Ele encerrou o seu último sermão de natal, pregado em dezembro de 1967 na Igreja Batista Ebenézer, em Atlanta, onde tinha começado, com as seguintes palavras:
Hoje, eu ainda tenho um sonho. Eu tenho um sonho que um dia os homens irão se levantar e ver que eles são feitos para viver juntos como irmãos. Eu ainda tenho um sonho esta manhã que um dia todo negro nesse país e toda pessoa de cor no mundo será julgada na base do conteúdo do seu caráter e não pela cor de sua pele, e que todo homem irá respeitar a dignidade e o valor da personalidade humana (…) Eu ainda tenho um sonho hoje que um dia a justiça irá correr como a água e a retidão como um poderoso ribeiro (…) Eu ainda tenho um sonho hoje que com essa fé nós iremos ser capazes de suspender os concílios do desespero e de trazer nova luz sobre as câmaras escuras do pessimismo. Com esta fé nós seremos capazes de acelerar o surgimento do dia quando haverá paz na terra e boa vontade para com os homens. Será um dia glorioso, as estrelas da manhã estarão cantando juntas e os filhos de Deus celebrando em júbilo (20).

Apesar do tom esperançoso do final, neste mesmo sermão King expressou a sua tristeza por ter visto o sonho descrito na sua fala em Washington, em 1963, se transformar num pesadelo, não muito tempo depois dali. Ele gasta um parágrafo inteiro descrevendo eventos que fizeram do sonho um pesadelo, mas termina reafirmando o sonho, a esperança, que predominou no seu pensamento. Ele diz que mesmo tendo sofrido com o adiamento dos sonhos e com os atentados a suas esperanças, ele não poderia abrir mão de encerrar aquele sermão re-afirmando o sonho. Porque abrir mão do sonho seria abrir mão da própria vida; abrir mão da esperança é abrir mão da vitalidade que nos mantém caminhando, é abrir mão da coragem de ser, daquela qualidade que nos ajuda a continuar indo a despeito de tudo. Foi essa esperança, baseada na fé num Deus poderoso para transformar trevas em luz e pranto em alegria, bem como na justiça final do universo, que sustentou King na sua caminhada em meio a todas as controvérsias e crises, e que o capacitou a se solidarizar com as muitas vítimas das várias formas de injustiça ao redor do mundo. A despeito de tudo, ele manteve firme a esperança de que, com a ajuda de Deus, podemos construir um mundo mais harmonioso.


Raimundo Barreto Raimundo Barreto é bacharel em teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte, com estudos no Seminário Teológico Batista Internacional em Praga, na República Tcheca. Fez o Mestrado em Divindades na Escola de Teologia McAfee, da Universidade Mercer, em Atlanta. Tem doutorado em Ética Social Cristã pelo Seminário Teológico de Princeton, em Nova Jersey, Estados Unidos. Desde 2004, lidera a Igreja Batista Esperança, Salvador (BA). Serviu ainda como coordenador geral do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. É o novo diretor da Divisão de Liberdade e Justiça da Aliança Batista Mundial. É casado com Eliã e pai de três filhos.

domingo, 22 de abril de 2012

Tenho medo


Por Rubem Alves

Eu tenho medo. Eu sempre tive medo. Viver é lutar diariamente com o medo. Minha filha Raquel tinha não mais que três anos. Era cedo, bem cedo. Ela me acordou e me perguntou: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?”. Essa foi a forma delicada que ela teve de me dizer que tinha medo da saudade que ela iria sentir, quando eu partisse. O rosto do medo mudou. Mas o sentimento continua o mesmo. Tenho medo da solidão. Há um solidão boa. É a solidão necessária para ouvir música, ler, pensar, escrever. Mas há a solidão do abandono.

Tenho medo da degeneração estética da velhice. Tenho medo que um derrame me paralise, deixando-me sem meios de efetivar a decisão que seria sábia e amorosa: partir. Tenho medo da morte. Antigamente esse medo me atormentava diariamente. Depois ele se tornou gentil. Ficou suave. Passei a compreender que a morte pode ser uma amiga. Veio-me à mente uma frase que se encontra na oração de Walter Rauschenbusch: “Ó Deus, nós te louvamos porque para nós a morte não é mais uma inimiga, e sim um grande anjo teu, nosso amigo, o único a poder abrir, para alguns de nós, a prisão da dor e do sofrimento e nos levar para os espaços imensos de uma nova vida. Mas nós somos como crianças, com medo do escuro..."

A pomba, que por medo do gavião, se recusasse a sair do ninho, já se teria perdido no próprio ato de fugir do gavião. Porque o medo lhe teria roubado aquilo o que de mais precioso existe num pássaro: o vôo. Quem, por medo do terrível, prefere o caminho prudente de fugir do risco, já nesse ato estará morto. Porque o medo lhe terá roubado aquilo que de mais precioso existe na vida humana: a capacidade de se arriscar para viver o que se ama.

Viver a vida, aceitando o risco da morte: isso tem o nome de coragem. Coragem não é ausência do medo. É viver, a despeito do medo.

Houve um tempo em que eu invocava os deuses para me proteger do medo. Eu repetia os poemas sagrados para exorcizar o medo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum...“ “Mil cairão à tua direita, dez mil à tua esquerda, mas nenhum mal te sucederá...“ A vida me ensinou que esses consolos não são verdadeiros. Os deuses não nos protegem do medo. Eles nos convidam à coragem de viver a despeito dele.

Rubem Alves - www.rubemalves.com.br

sábado, 14 de abril de 2012

A inquietude nossa de cada dia, dá-me hoje


Por Jonathan Menezes

Publicado em 10/1/2012

Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te agitas dentro de mim?

Existe conversa mais crucial que aquela travada com a própria alma? Pois é o que o salmista faz no repetido verso da canção de profunda angústia e inquietação por ele entoada no Salmo 42, na qual convida sua alma para um bate-papo querendo entender a razão de tanto abatimento. Uma das coisas mais sadias e razoáveis que alguém pode fazer quando não dá conta de algo é ser honesto, consigo mesmo, com os outros e com Deus. No caso do salmista, essa honestidade se apresenta em forma de perguntas: Por que me sinto tão abatido? Até quando essa situação vai perdurar? Onde está o meu Deus? Por que permanece calado por tanto tempo?

Perguntas como essas evidenciam dúvidas e temores que assolam até o mais seguro de si – embora gente muito segura de si tenda a não abrir mão de sua fachada de austeridade – e cujas respostas não são simples nem exatas. Aliás, em se tratando da vida e do sofrimento humano nada pode ser simples ou exato. Por isso a linguagem dos trovadores e profetas é recheada de honestidade, paradoxos e de bela, ilógica e não equacionável poesia. A inquietude, quando não abafada com consolos artificiais, atrai e torna-se parceira dos paradoxos. O paradoxo pode até existir fora da mente, mas não pode ser reconhecido sem que (na mente) se dê lugar à inquietude, a qual provoca o pensamento que nos desperta quando algo não vai bem e nem, necessariamente, irá ficar bem – ao menos não do jeito desejado, tampouco com falsas garantias, do tipo: “Basta acreditar, que tudo vai dar certo!”.

O enfrentamento do paradoxo, por sua vez, promove, na linguagem do poeta, o que chamo aqui de aceitação inquieta – a aceitação que não se confunde com mera rendição. Ou seja, aceitar uma determinada condição não implica em se render ou se resignar a ela. Por exemplo: reconhecer e aceitar que a política no Brasil é permeada por corrupção não implica em se render à falácia de que todo mundo que nela se envolve é ou fatalmente será um corrupto, ou que nada pode ser feito a respeito da corrupção. Ademais, a realidade não se reduz ao que vemos. O que se vê é apenas uma parte do real, tanto quanto o olhar em si é parcial. Como bem disse Paulo, “agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho...” (1Coríntios 13.12).

Assim, aceitação inquieta é aquela que indica a presença de uma fé que não banaliza nem suprime a realidade tal como a vemos ao mesmo tempo em que afirma (mesmo que relutando) a possibilidade e a imperiosidade de sua transformação. Por esta razão, a linguagem dos salmos – tão recheada de seus “por que” e “até quando” – também vem temperada com seus “contudo”, “apesar de” e “ainda que”, denotando fé na presença, persistência e fidelidade divinas em meio às mais variadas circunstâncias.

O silêncio (e aparente ausência) de Deus não é sinal de indolência ou paralisia da parte Dele, assim como minhas eventuais dúvidas, reclames e inquietações também não são sinais da falta ou morte da fé em mim. Pelo contrário, a inquietude não apenas provoca na mente o encontro com os paradoxos, como já dito, como retira a fé dos escombros da passividade e da falsa retidão, tornando-a um organismo vivo, atuante e em constante transformação.

A maturidade, desta forma, está mais para um tesouro a ser perseguido pelos cantos da existência e ao longo da vida na fé, que para um porto seguro onde se pode atracar de uma vez por todas. A soberba (ou o chamado “orgulho espiritual”) é que precisa de portos seguros de tal natureza. A “paz que excede todo entendimento”, não excede, mas existe paradoxalmente no meio de todo sofrimento, dúvida e inquietude que possamos ter. A fé bíblica se alimenta, então, de uma espera inquieta e de uma inquietude expectante, em que uma mesma pessoa pode (em tom realista) indagar: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim?”. E ainda assim (em tom esperançoso) declarar: “Espera em Deus, pois ainda o louvarei” (Sl 42.11).

sábado, 7 de abril de 2012

O Respeito Divino



Por Ariovaldo Ramos

(Jo 21:17)
"Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro entristeceu- se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas? E respondeu- lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo. Jesus lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas."


Pedro negara a Jesus da forma mais angustiante. O último contato entre Pedro e o Cristo fora logo após o canto do galo. A profecia se cumprira: antes do galo cantar, Pedro negara, três vezes, conhecer ao Cristo; e quando o galo cantou os olhares de Pedro e do Cristo se encontraram... Nada mais restava a Pedro, senão sair para chorar.

Quando as mulheres, no domingo da ressurreição, foram ao túmulo para embalsamar o corpo de Jesus, encontraram o Anjo, que, após comunicar a ressurreição do Cristo, transmitiu-lhes a missão de comunicar aos discípulos e a Pedro, que o Cristo os encontraria na Galiléia.

Ao orientar ao Anjo que nominasse a Pedro, Jesus comunicou-lhe que fora perdoado e reincluso no colégio dos alunos do Cristo. Estava de volta ao time!

Galiléia dos gentios... Jesus reencontra Pedro. Primeiro, comeram, sempre um momento de descontração, ainda que estivessem diante do numinoso manifesto em carne, o que sempre silencia quem quer que seja. O mistério, quanto mais maravilhoso, mais impõe o pausa da reverência. E, então, começa um diálogo inusitado que não surpreende pelo constrangimento natural, mas pelo conteúdo.

Jesus tem a conversa esperada com seu aluno renegado, mas, para surpresa geral e particular, não toca no assunto. Não inquire sobre os motivos de tal abjeto ato, que, ademais, lhe havia sido avisado com antecedência; não questiona o porquê de não ter pedido ajuda quando teve oportunidade, nem pronuncia o temerário: "eu não lhe disse?".

Jesus, o Cristo, respeita o arrependimento de Pedro. O Messias quer, apenas, saber se a base para a retomada de qualquer relacionamento continua presente no coração do aprendiz. Se Pedro ainda o amava.

O mais triste no pecado é perceber que, ainda que por um momento, um amor consumido pelo egoísmo traiu o amor que sustenta vida, o amor por aquele que, na essência, é amado mais que a própria vida.

Arrepender-se é voltar consternado ao amor que, abandonar leva à perda do sentido da existência. Esse retorno tem de ser respeitado!

Nada mais angustiante do que o desrespeito ao arrependido. Nada mais terrível do que erro já confessado continuar a ser o assunto de rodas de pretensos irmãos. Nada mais aviltante do que pessoas a quem foi pedido perdão, principalmente, se mentores, ficarem a espalhar o que lhes foi dito no lugar sagrado da confissão.

A condicão indispensável para se sustentar a sinceridade do perdão ou do amor é o respeito ao arrependimento. Logo, o respeito ao arrependido. A maneira de respeitar o arrependido é o silêncio que dá lugar ao amor. O arrependimento é fruto de dor que o perdão deveria consolar.

Jesus acreditou em Pedro e lhe devolveu a honra, devolveu-lhe as chaves do Reino. O Cristo sempre faz assim quando perdoa!

E o surpreendente, tendo como base o cristão moderno, é que os demais apóstolos nunca questionaram o ato do Cristo. Ninguém saiu a contestar Pedro ou a reinvidicar para si as chaves pelo Senhor devolvidas. Ninguém nunca mais tocou no assunto. Não há pecado onde Deus não imputa pecado. O arrependimento tem de ser respeitado. Pedro voltou a ser digno de confiança como o deve ser quem quer que tenha se arrependido.

(c) ariovaldoramos
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