sábado, 30 de outubro de 2010

Passeio Socrático

por Frei Betto *

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz nos seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos dependurados em telefones celulares; mostravam-se preocupados, ansiosos e, na lanchonete, comiam mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, muitos demonstravam um apetite voraz. Aquilo me fez refletir: Qual dos dois modelos produz felicidade? O dos monges ou o dos executivos?

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: “Não foi à aula?” Ela respondeu: “Não; minha aula é à tarde”. Comemorei: “Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir um pouco mais”. “Não”, ela retrucou, “tenho tanta coisa de manhã…”. “Que tanta coisa?”, indaguei. “Aulas de inglês, balé, pintura, piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: “Que pena, a Daniela não disse: ‘Tenho aula de meditação!’”.

A sociedade na qual vivemos constrói super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas muitos são emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram que, agora, mais importante que o QI (Quociente Intelectual), é a IE (Inteligência Emocional). Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma próspera cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: “Como estava o defunto?”. “Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!” Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais…

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil – com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilidade coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!”. O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma su gestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globocolonizador, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade – a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas…

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno… Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer de uma cadeia transnacional de sanduíches saturados de gordura…

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Estou apenas fazendo um passeio socrático.” Diante de seus olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, que morreu no ano 399 antes de Cristo, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”

* Escritor e assessor de movimentos sociais

domingo, 24 de outubro de 2010

Viva a vida

por Mário Machado

A vida é um misto de coisas que não entendemos;
É o que somos, o que falamos o que fazemos.
É tudo isso e muito mais! Mistura de realidade e fantasia.
É um misto de tristezas, alegrias; se renova todo dia.

É um prenúncio de eternidade, pra uns, um buscar a tal felicidade.
Sou eu, é você, somos nós em todo canto, no campo, na cidade.
Fazendo hoje o dia de amanhã, construindo o futuro
Que nem sempre é uma ponte e sim um beco escuro, um muro.

A vida é um aprender viver, vivendo, sempre sendo,
Sorrindo, chorando, brincando, sofrendo.
É tanta coisa e quase nada! Um momento, uma estrada
Cheia de curvas e que acaba de repente numa brecada.

A vida é sempre complexa, porém, jamais desconexa e sem sentido.
É passageira, dirigida com firmeza por quem conhece o caminho
E sabe onde a estrada vai dar no final da história, do tempo.
A vida é como um veleiro, que rasga os mares, ao sabor do vento!

Veleiro livre, leve, solto, num mar ora calmo, ora revolto,
Porém, guiado por mãos experientes; bússola e leme firme; nunca solto.
A vida pode ser o que você quiser, ou, o que Deus planejou desde o começo.
Viver é basicamente fazer escolhas, lembrando-se que toda a escolha tem seu preço.

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Para ruminar vida afora:
"Então, formou Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente" Gênesis 2:7.

domingo, 17 de outubro de 2010

A oração, serve para alguma coisa?


por Harold Segura

A pergunta é capciosa, não há dúvida, mas válida se considerarmos que vivemos numa época onde impera o funcional e o pragmático. Hoje não há tempo para o incerto e o intangível. O mistério do divino foi ocultado por nosso racionalismo funcional. Por isso, nos perguntam: Por que crer no céu como solução para os enormes problemas da terra? Não haverá meios mais eficazes e decisivos para acabar com as situações indignas do ser humano? Em outras palavras: Podemos orar e estar seguros de que serve para alguma coisa?

Estas são inquietações honestas que surgem, sobretudo, ao se olhar a realidade angustiante de nosso mundo. A fome, a pobreza, a corrupção, a violência e a exclusão social, entre outros problemas, nos desesperam e nos conduzem a buscar soluções práticas, nas quais não se concede lugar algum à oração. Este ceticismo se percebe, inclusive, frequentemente entre cristãos que trabalham a favor da transformação humana e do bem-estar integral dos demais. Um ceticismo que, em alguns casos, transforma a fé em ativismo e a esperança em messianismo humano.

A vida e os ensinamentos de Jesus nos recordam da centralidade da oração. Para ele, a oração era a forma de se manter em contato permanente com o Pai, de submeter-se ao escrutínio de Sua vontade e de receber a inspiração para continuar anunciando e tornando presente a realidade do Reino de Deus e da sua justiça. Jesus orava em privado, em público e muitas vezes se unia a seus discípulos para praticar a oração comunitária. Sempre cuidou para não cair nos riscos da oração ritualista, carente de sentido e ação, como era a oração dos religiosos do seu tempo. Lembrou aos fariseus de que suas longas orações não serviam para nada — eram apenas uma desculpa a mais para sua religiosidade carente de justiça e misericórdia para com o próximo.

Mas, serve para alguma coisa? Não serve de nada quando se desliga do compromisso cotidiano com a causa do Reino de Deus e quando se divorcia da vida e da história. Não é cristã a devoção que se separa da ética. Kant, o célebre filósofo alemão, já assinalava que o ser humano se eximia de atuar moralmente orando. Por isso, a oração era, para ele, literalmente mera estupidez.

A oração de nada serve, sejamos sinceros, quando paralisa as ações e justifica a falta de compromissos. De nada serve quando aliena a existência e serve como desculpa para a injustiça. A isso se referia Jesus quando disse: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações... (Mateus 23:14). Suas orações, ainda que longas e eloquentes, não eram mais que palavrórios mal intencionados para ocultar o despojo. Daí, a dureza com que Jesus as condenou.

Mas serve para muita coisa, e parece crucial, quando vai unida à ação e quando se integra na totalidade de nossa vida cristã; quando é súplica sincera que busca conhecer a vontade do Pai e quando conduz ao compromisso efetivo com essa vontade revelada. Jesus orava: “…contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres” (Mateus 26:39).

Desse modo, devemos ressaltar o binômio oração-ação para que nossas orações não fiquem na retórica litúrgica mas que conduzam ao cumprimento da vontade de Deus no mundo. Mas para que nossas ações, por mais esforçadas e nobres que sejam, também não se convertam em ativismo insignificante, onde Deus — o “totalmente outro” — fique ausente e eliminemos assim a possibilidade do sentido de nosso compromisso como cristãos. Orar e não agir é tão errado como agir sem orar.

Oração e ação são um casal que não deveríamos divorciar; para que nossas orações sirvam para alguma coisa e para que nossas ações levem a algum lugar. A chave volta a estar na velha regra monástica Ora et labora, como ensinava São Bento.
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Harold Segura é teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã (Encontro Publicações, 2007) e de Para que Serve a Espiritualidade? (Ultimato, 2010).

domingo, 10 de outubro de 2010

Cristianismo e Política

Por Artur Gueiros

O Evangelho, o senhorio de Cristo, se espraia por todos os aspectos de nossas vidas. Tudo pode e deve ser utilizado pelo cristão como instrumento de graça, como materialização do amor: um sorriso, um email, um olhar, um blog, um livro, um tweet, um abraço, um olá e, da mesma forma, a política. Ela nada mais é do que a ferramenta na qual as relações de poder se estabelecem; não se restringe a voto, candidatos, congresso etc, mas abrange o nosso dia-a-dia, nossas decisões, nossos posicionamentos.

O partido de Cristo é o Reino, seus valores são o parâmetro, e o objetivo final é a glória de Deus. Num estado democrático, a política é o instrumento pelo qual se dão as maiores e mais abrangentes transformações para o país. Toda e qualquer demanda ou pressão exercida pelos diversos atores sociais tem, necessariamente, que desembocar na política institucional para que tome forma legal atingindo, assim, todos os cidadãos. Como servos do Altíssimo, deveríamos buscar desenvolver um maior interesse pela política, explorar seu potencial como instrumento de transformação da realidade, refletindo os valores de Deus na sociedade.

A política deve ser cuidada pelos cristãos, aperfeiçoada, bem utilizada, e não, desdenhada. O fato de candidatos e partidos caírem em erro, não deveria nos surpreender; não temos nenhuma ilusão quanto ao estado de total depravação do homem e à luta contínua contra o pecado que tenazmente nos assedia. Pelo contrário, nossa relação com Deus - ao expor nossas fraquezas - nos impulsiona a aperfeiçoar a política, de maneira a dificultar que a ganância, a vaidade e o egoísmo humanos tenham espaço nas estruturas econômicas e sociais, gerando fome, miséria e dor. Nosso relacionamento com o Pai deve nos mover para políticas públicas que corrijam a vil miséria que insulta os céus, caso contrário, as pedras continuarão clamando, e o Senhor continuará usando ímpios para realizar a tarefa que nos foi endereçada. Multipliquemos, pois, o talento que nos foi confiado. Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste; E, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros. Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado. Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes.Mt 25:24-30.

Preocupamos-nos mais com as conseqüências: aborto e homossexualismo, do que com as causas - objetização da mulher na mídia, abuso sexual de crianças, tráfico de seres humanos, qualidade dos programas de TV, desigualdade e opressão no campo e na cidade, exploração no trabalho, impostos injustos, juros bancários extorsivos, destruição da natureza. Enquanto Corpo de Cristo, temos que ser a materialização do amor de Deus na sociedade que nos cerca (na qual deveríamos estar inseridos), mostrando através das boas obras - “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” -, que Deus se importa e que tem um plano melhor para o mundo. O Eterno exige que identifiquemos o mal (Informa-se o justo da causa dos pobres, mas o perverso de nada disso quer saber. Pv. 29:7) e o combatamos, onde quer que se manifeste, pois praticar a justiça é alegria para o justo, mas espanto, para os que praticam a iniquidade. Pv 21:15.

Aborrecer o mal e colocar-se como prumo na construção de uma sociedade mais justa (Ai dos que decretam leis injustas, dos que escrevem leis de opressão, para negarem justiça aos pobres, para arrebatarem o direito aos aflitos... Is 10:1,2.) e mais amorosa (O lobo habitará com o cordeiro,...; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará. Is 11:6) é um papel do qual não podemos nos furtar, e para o qual precisamos cultivar senso crítico e discernimento, fundamentais para a compreensão e a prática do Evangelho. A falta deles costuma gerar uma fé supersticiosa, cheia de medo, de dogmas e de autoritarismo, distinta da fé dinâmica vivida e pregada pelos reformadores (Ecclesia reformata semper reformanda).

Quando a igreja não tem discernimento histórico do seu papel, do que se passa no mundo, das correlações de força, das relações de causa e conseqüência, quando falta profecia (Pv 29:18), ela se afasta do pleno testemunho de Cristo. A Palavra e a história mostram que nem sempre a presença da igreja indica a presença de Jesus. Os tristes exemplos das igrejas segregacionistas no sul dos EUA e na África do Sul, bem como as igrejas que apoiaram e deram suporte aos golpes militares na América do sul revelam isto. Se temos hoje dificuldade em entender nosso papel e compromisso diante da injusta realidade brasileira, a resposta se encontra em parte na nossa própria história eclesial, que sepultou, a duros golpes, o pensamento crítico e a reflexão, fazendo com que os erros do passado se tornassem os dogmas que engessam a compreensão e transformação do presente. Cabe-nos trazê-los (crítica e reflexão) à vida novamente, para que o Senhor nos guie pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Pois em Cristo, um outro mundo é possível.
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Artur Leonardo Gueiros Barbosa
http://twitter.com/arturgueiros

domingo, 3 de outubro de 2010

Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil

por Paulo Nascimento

Ele era um homem simples. Não teve muita escolaridade. Era um apaixonado pela política e foi vereador em sua cidade por cinco mandatos consecutivos. Chegou também a ser prefeito interino em três ocasiões. Homem de grande popularidade e de intensa atividade política. Foram essas características que marcaram o seu nome na história de sua pequena cidade.

O que pouca gente sabe por lá é que ele também era poeta prolixo. Melhor dizendo, ninguém além de seus próprios filhos sabe disso. Escreveu muito e com uma caligrafia de colocar inveja em qualquer escrivão. Livros publicados? Até que poderia ser, se um dos seus “filhos geniais” não tivesse dado um fim desconhecido para os seus manuscritos. Nada, absolutamente nada ficou para a memória após sua morte. Só ficou uma sensação de algo entalado na garganta. A vontade de saber como seriam aquelas poesias que ninguém conhecia.

De quem estou falando? Do meu avô! Político-poeta, cujo legado literário foi privado da família por um tio meu, que cometeu a insensatez de destruir (não se sabe por que) os manuscritos do meu avô.

Coisa semelhante pode ter acontecido com Paulo de Tarso, no que diz respeito a uma certa carta que teria sido endereçada aos cristãos de Laodicéia (Cl 4,16). Que carta era aquela que teria sido lida entre os cristãos de Laodicéia, e que deveria ter sido lida entre os colossenses também? Li comentários que dizem ser a mesma carta aos Efésios. De onde vem essa certeza? Será que suposições como essa refletem o medo de admitir que existem (se é que ainda existem) textos inspirados fora do nosso Novo Testamento canônico? Se essa carta fosse achada pelas pesquisas arqueológicas, entre os escritos do Mar Morto em 1947, suponhamos, ela seria incluída entre os escritos sagrados da Bíblia cristã? São tantas as dúvidas. Mas a principal delas é idêntica ao caso do meu avô: qual o conteúdo dos manuscritos? Quais as recomendações do apóstolo nesse outro escrito?

Entre Paulo e meu avô, o apóstolo deu mais sorte. Alguns dos seus escritos estão ainda entre nós. No caso do meu avô, seus escritos transformaram-se na pior classe de enigmas: os indecifráveis. Nunca saberemos por quais céus voou a imaginação do meu avô; se ele privilegiou os pássaros ou os montes; ou se ele preferiu os sentimentos humanos. Dor sem consolo, dor de morte.

Eu ia falando de imaginação, que é coisa fantástica. Foi com ela que Martin Luther King Jr., aquele notável pastor batista norte-americano pensou em como seria uma carta paulina aos cristãos da América. Ele foi na contramão da carta de Paulo aos laodicenses e dos poemas do meu avô. Esses escritos existiram, mas nenhum de nós os conheceu. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca existiu, mas alguns de nós a conhecemos. A epístola “paulina” é de conteúdo tão interessante e contextualizado que eu resolvi, ao invés de comentá-la, transcrever ipsis verbis (ao pé da letra) alguns dos seus tópicos principais. Veja o que para Martin Luther King Jr. teria sido uma carta do apóstolo Paulo aos cristãos dos Estados Unidos, em meados dos anos 60:

Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado ao apostolado pela vontade de Deus, a todos os que estais na América, convosco a graça e a paz da parte de Deus Nosso Senhor e de Jesus Cristo. [...]

Contaram-me das maravilhosas e extraordinárias descobertas que haveis feito no campo científico e nas vossas espantosas realizações tanto na terra como no ar. O vosso gênio científico conseguiu encurtar distâncias e pôr o tempo a ferros. Tornastes possível ir almoçar em Paris, na França, e vir jantar em Nova Iorque, na América.

Também me falaram dos vossos imponentes ‘arranha-céus’, cujas alturas prodigiosas se projetam no espaço; nos avanços da medicina e nos remédios que curam tantas doenças gravíssimas, prolongando assim as vossas vidas e proporcionando-vos uma maior segurança e um maior bem-estar físico.

Tudo isso é maravilhoso. [...] Mas, América, parece-me que o vosso progresso moral e espiritual não terá acompanhado o científico. [...] Conseguistes, através do vosso progresso científico, tornar o mundo próximo, mas falhastes no aproveitamento do vosso gênio moral e espiritual para dele fazerdes uma fraternidade. [...] Rogo-vos, pois, que coloqueis o vosso progresso moral à frente do científico. [...]

Vejo que muitos cristãos na América dão primordial importância aos sistemas e costumes criados pelo homem. Temem ser considerados diferentes; a sua maior preocupação é serem socialmente aceitos. [...] Numa época em que homens procuram destruir os altos valores da fé, vós deveis agarrar-vos a esses mesmos valores e, a despeito da pressão contrária exercida pela geração presente, preservá-los para as gerações futuras.

Deveis desafiar com energia os erros dos costumes, defender as causas desfavorecidas e lutar contra o status quo. [...] Sei que adotastes na América um sistema chamado capitalismo, que vos têm permitido realizar maravilhas; tornaste-vos na mais rica nação do mundo e edificastes o maior organismo de produção de toda história. [...] Dizem que mais de 40% da riqueza nacional está nas mãos dum décimo de 1% da população. [...] Se quereis ser uma autêntica nação cristã, tendes de solucionar este problema! [...] Utilizai os vossos vastos recursos econômicos na abolição da miséria no mundo. Não é vontade de Deus que alguns vivam na riqueza supérflua e ostensiva, enquanto outros apenas conhecem a mais negra miséria. [...]

Disseram-me que existem dentro do Protestantismo americano mais de duzentas e cinquenta denominações diferentes. Não é positivamente nessa multiplicidade que reside o drama, mas no fato de muitos dos grupos se proclamarem detentores da verdade absoluta. Um tão limitado sectarismo destrói a unidade do Corpo de Cristo. Deus não é batista, metodista, presbiteriano ou episcopal; Deus transcende as nossas discriminações. Se vós, América, quereis ser testemunha autêntica de Cristo, fazei por compreender aquilo que vos digo.

Sinto-me feliz por saber que há na América um interesse cada vez maior pela unidade da Igreja e pelo Ecumenismo. [...] Também tive animadoras notícias sobre diálogos recentes entre Católicos Romanos e os Protestantes. [...] Espero que [isso] represente o início dum movimento para uma união cada vez maior entre todos os cristãos. [...]

Outra coisa que me perturba na igreja americana é nela poder existir a divisão entre brancos e pretos. Como é possível a segregação no autêntico corpo de Cristo? Parece até, segundo me dizem, que é maior a integração na sociedade mundana e noutras atividades seculares, do que na Igreja cristã. Como isto é horrível! Julgo que há entre vós cristãos que tentam descobrir fundamentos bíblicos para justificar a segregação e provar que o negro é, por natureza, inferior ao branco. Ora, tal idéia é blasfema e contrária a tudo o que a religião cristã afirma. Repito o que já disse antes a muitos outros cristãos: em Cristo “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher pois todos vós sois um em Jesus Cristo”. [...] Exorto-vos, pois, a libertar-vos de qualquer espécie de segregação. [...] Nunca vos deixeis rebaixar tanto por alguém, que sejais obrigados a odiá-lo. [...]

A finalidade da vida não é ser feliz nem procurar o prazer e fugir ao sofrimento mas, venha o que vier, cumprir sempre a vontade de Deus. [...]

Podeis ter o dom da predição científica ou o profundo conhecimento do comportamento das moléculas; podeis penetrar o interior da natureza e lá adquirir novos e enormes conhecimentos; podeis ascender aos mais altos cargos acadêmicos; possuir toda a ciência, vangloriar-vos dos vossos grandes estabelecimentos de ensino e da vastidão ilimitada dos vossos cursos; quando, porém, vos falte o amor, nada disso vos aproveitará. [...]

Digo-vos adeus. Saudai calorosamente a todos os santos ao serviço de Cristo. Confortai os outros; conservai um mesmo espírito; vivei em paz. [...] A Deus seja dada honra e glória por todos os séculos dos séculos. Amém.
Como você deve ter notado, eu retalhei a epístola no esforço de transcrever apenas os tópicos básicos que a compõe. Ela é bem maior que isso, e bem mais detalhada. Todavia, lhe dou minha palavra de que evitei todo tendencionismo no momento de separar os trechos. Se você preferir conferir por si mesmo(a), leia daquele autor Strength to love – em português Força para amar (Editora Tapir) –, já que é nesse livro que se encontra a versão na íntegra da Carta de São Paulo aos cristãos da América. Infelizmente, Martin Luther King Jr. foi tirado desse mundo pelos poderes que desejam perpetuar o status quo. Meu desejo sincero é que ele ainda estivesse vivo e viesse passar uma temporada aqui no Brasil. Quem sabe ele usaria mais uma vez da sua admirável imaginação e escreveria uma Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil?!

Não obstante, voltaram-me à cabeça as poesias do meu avô e a carta de Paulo à igreja de Laodicéia. Elas existiram um dia, mas nós nunca as conheceremos. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca foi escrita por Paulo, mas nós agora a conhecemos pela imaginação de um pastor preocupado com um cristianismo mais relevante. A Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil também nunca existiu, mas a nossa imaginação, aliada à nossa sensibilidade e vontade de um cristianismo mais original, isto é, mais “apegado às origens”, pode imaginar como seria essa epístola. Então, agora é hora de fazer silêncio e começar a pensar...

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Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
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