segunda-feira, 5 de abril de 2010

Felicidade e Amor


por Ronaldo Martins

As pessoas querem ser felizes. Mesmo o suicida, quando atenta contra a própria vida, almeja interromper o sofrimento. Como os filósofos gregos diziam, felicidade é a “ausência de perturbações”. O desejo de experimentar a paz definitiva ou a superação completa da dor nos move durante toda a existência.

Para compreender as relações entre o amor militante e as possibilidades de uma vida feliz, vou ao baú de Guimarães Rosa ouvir a opinião de Riobaldo:

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”.

Está dito. Felicidade não se encontra em algum lugar, não se compra com tesouros, não é um estado de espírito, tampouco se traduz em um jogo no qual nossa tarefa é buscar no tabuleiro as casas pintadas de alegrias e fugir das casas que escondem as tristezas. Não precisamos jogar dados para sermos felizes. Diríamos que felicidade seja avançar pelo tabuleiro com serenidade e sabedoria, vencendo todas as casas que se apresentarem.

Alguns cientistas que se aventuram a descobrir o verdadeiro caminho da felicidade chegaram a conclusão parecida. Chamou minha atenção a notícia de jornal que destacava uma pesquisa sobre o tema feita por dois psicólogos britânicos: Pete Cohen e Caro Rothwell. Eles desenvolveram a equação da felicidade, que tinha a seguinte fórmula: “Felicidade = P + (5xE) + (3xH)”. “P” são as pessoas, “E” e “H” são aspectos existenciais, como auto-estima, saúde, estabilidade ou amizades cultivadas. Cada entre nós, é um exercício infrutífero querer medir a felicidade por meio de uma equação matemática. Mas vale a pena notar um detalhe do estudo feito pelos britânicos. Durante a aplicação de entrevistas com mais de mil pessoas, eles concluíram que os felizes têm algumas características marcantes: perspectiva de vida, adaptabilidade e capacidade de se manterem otimistas ante a adversidade. As pessoas felizes são aquelas que aprenderam a encarar as possibilidades que a vida lhes apresenta, sem se esconder, seja nos momentos de dificuldades ou nos momentos de alegria.

Seguindo a trilha do mesmo raciocínio, uma série de encontros com o Dalai Lama fez com que o psiquiatra norte-americano Howard C. Cutler abandonasse o mal costume de sequer pronunciar a palavra “felicidade” com objetivo terapêutico, conforme aprendera em sua formação. Depois de conviver por algum tempo com o líder budista, ele chegou à conclusão de que o sentido da vida é perseguir a felicidade. Mas não aquela felicidade que parece só existir nos curtos momentos de prazer. “Na realidade, o fato de nos sentirmos felizes ou infelizes a qualquer dado momento costuma ter muito pouco a ver com nossas condições absolutas mas é, sim, uma função de como percebemos nossa situação, da satisfação que sentimos com o que temos”, afirma no livro A Arte da Felicidade, que surgiu das conversas de Cutler com o Dalai Lama.

A felicidade é sempre grávida de beleza e ninguém consegue ser belo ocultando aquilo que pode gerar desconforto. Quem aparenta tamanha beleza corre o risco de causar uma falsa impressão sobre si mesmo. Aprendi isso depois que plantei um gramado no meu quintal. Para ser verde e bonita, a grama depende de água e sol. Mas ela nos engana. Quando começa a crescer, criando um contraste de cores com as outras plantas do jardim, nos deixa tão entusiasmados que vamos adiando a poda. Decepção é perceber que o verde está apenas na superfície. Sem o sol, a base do gramado vai secando e ele perde a beleza quando as podadeiras o trazem para o tamanho ideal.

Para ser feliz é necessário admitir que o amor é tudo. Confesso que tenho medo dessa conclusão porque vivemos em um tempo que rouba os sentidos da palavra amor, muitas vezes reduzida à idéia de um sentimento que deixa extasiados os casais tomados pela paixão. O amor não deve ser percebido pelos sentimentos que desperta. Concordo com o que pensa Marcel Conche: “o amor tem o caráter de um projeto, cujo fim é, para o ser amado, uma vida feliz porque vivida de acordo com a mais profunda verdade”. O amor não deveria conduzir os indivíduos à alienação e ao estranhamento, mas sim à realização. Visto apenas na perspectiva dos sentimentos que pode gerar, o amor esvazia as pessoas de si mesmas e as leva para um mundo distante, no qual o futuro deixa de existir, posto que o presente fica eternizado na paixão. “Viver não é limitar-se a passar o tempo, ainda que esse fosse bom, mas consumar, tornar-se o que se é virtualmente, o que se é em promessa, é obrar, trabalhar, criar”, arremata Conche.

Recolhendo as metáforas que a natureza nos oferece, eu diria que a paixão é como uma manga rosa: impossível comer sem se lambuzar. Quem chupa manga como deve ser, não recorre a talhares. Devora cada gota, tentando evitar que ela fuja das mãos. O amor não é menos excitante, mas se aproxima muito mais da jabuticaba. A gente pode chupar uma a uma, num ritmo mais sereno, sem se preocupar com o que vem depois. Seriam o amor e a paixão dois caminhos que não se cruzam? Obviamente que não. Quando o canoista desce uma corredeira e chega no remanso, pode decidir voltar e repetir o percurso, pelo prazer de se desviar dos obstáculos e experimentar os movimentos frenéticos da descida. Quem sabe, faça isso por um dia inteiro. Não lhe interessam as águas calmas do rio. Paixão. Mas se a escolha for prosseguir navegando, ele pode descobrir outros prazeres: o silêncio que descortina o canto dos pássaros; as curvas do rio, que revelam surpresas da natureza; o verde das árvores, contrastando com a rudez dos barrancos. Talvez surjam outras corredeiras pelo caminho. A paixão é como um vulcão que não tem hora para cuspir sua lava. O amor é uma chuva fina que não tem pressa de encharcar a terra.

O amor deve ser vivido como uma militância que nos permite compreender o caminho da felicidade. Ele nos faz superar a noção de que devemos colher poções diárias de prazer e nos leva de volta às questões centrais de nossas vidas. É Spinoza quem indica o amor como a causa de tudo: “toda felicidade ou infelicidade consiste somente numa coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos pelo amor”. Tudo que somos, tudo o que fazemos, os ideais que defendemos, dependem do amor. Ninguém é capaz de brigar por aquilo que não ama. Se um artista encontra a felicidade nos palcos, é porque ele ama representar; se um político move mundos e fundos para ter um mandato, é porque ele ama o poder; se um atleta supera as dores em busca de uma medalha, é porque ele ama a glória das conquistas; se um anônimo almeja a fama, é porque ele ama a idéia de vir a ser reconhecido. Na mesma direção, a mãe que não admite os erros do filho, está possuída de amor; o ativista que luta pelos direitos civis ama a liberdade; o soldado que vai para o campo de batalha ama a sua pátria (ou a esperança de que sua coragem seja reconhecida). Sem amor, não há “nenhuma comoção da alma”.

O que valeria a pena amar com o intuito de construir uma vida feliz? É claro que esperamos amar nossos filhos, nossos parceiros, nossos amigos de caminhada. Mas, para além disso, qual é a causa primeira, em função da qual movemos nossas vidas? Por trás de nossos valores pessoais há uma motivação essencial. Spinoza entendia que, para a maioria das pessoas, o supremo bem é percebido nas riquezas, nas honras e nas concupiscências. Eu acrescentaria à lista o poder, uma vez que as honras nem sempre derivam dele. Por recusar admitir que dinheiro, prestígio ou poder sejam os melhores motores para o desenvolvimento de um amor militante, proponho outros três caminhos para a tentativa de uma vida feliz: o amor ao conhecimento, o amor à beleza e o amor a Deus. Esses caminhos nos fazem perceber que o filósofo, o artista e o sacerdote têm o mesmo ofício: apresentar às pessoas o caminho da felicidade.

A filosofia, ainda que desviada de sua rota de tempos em tempos, sobrevive incomodada por uma questão original: a felicidade. Quem pergunta não sou eu, mas Sponville, um filósofo contemporâneo: “Se a filosofia não nos ajuda a ser felizes, ou a ser menos infelizes, para que serve a filosofia?”. Ele mesmo reconhece que não há nada mais relevante que a velha definição de Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Que assim seja. Também a arte, ao desenvolver apelos estéticos que nos fazem admirar a beleza, cria em nós o conforto em relação à existência. Aprender a ouvir Mozart, a enxergar Da Vinci, a contemplar um campo de orquídeas na Serra do Cipó, a ler Garcia Márquez, é aprender a encontrar a beleza que não se despe apenas nos corpos.

Podemos ser felizes amando o conhecimento que a filosofia nos proporciona ou a beleza que a arte nos desperta. Mas, e os religiosos que definem Deus como amor? O que eles sabem sobre uma vida feliz a partir do amor a Deus? O cristianismo tem o amor em sua plataforma de conduta e ética. Entretanto, as Igrejas parecem não se preocupar muito em compreender o amor como condição essencial para a salvação do homem.

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbale que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que distribua todos os meus bens entre os pobres, e ainda que entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. (Carta de Paulo aos Coríntios)

Os textos sagrados nos autorizam a afirmar que não há nada mais importante que o amor. O apóstolo Paulo encerra com um enigma o hino em que discorre sobre o tema: “agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Mas o maior destes é o amor”. Poderíamos dizer que melhor coisa é amar do que ter fé e esperança? Na exegese que fazem do texto paulino, Santo Agostinho e Tomás de Aquino afirmam que sim. Para eles, o amor é a única virtude que faz sentido tanto no presente quanto no Reino futuro. Lá, não será mais preciso a fé, visto que todos estarão completos, como o mesmo Paulo afirma: “quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Porque agora vemos por espelho, em enigma, mas então veremos face a face”. Obrigatório é concluir que, quando formos completos, de nada nos valerá também a esperança

O que pensava Jesus sobre isso? Ele, que não tinha fé nem esperança. É reveladora a conversa que o mestre teve com seus discípulos pouco antes de ser preso e caminhar para a morte. O ambiente era carregado de profunda angústia. Jesus havia revelado que estava de partida. Mas ele tinha a preocupação de deixar os discípulos orientados sobre a virtude que poderia fazer deles uma espécie de gente diferente. Seria a fé? A esperança? Parece que não. Jesus propôs apenas que eles amassem. Assim o Evangelho de João narra: “novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”. Jesus reforçou para os discípulos a convicção de que apenas o amor sem medida poderia distingui-los no meio da multidão: “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”.

Depois de ressucitar e conviver com os discípulos por mais algum tempo, Jesus trava um diálogo revelador com Pedro, escolhido para liderar o grupo. Por três vezes, ele insiste na mesma pergunta: “Pedro, tu me amas?”. A resposta afirmativa não satisfez Jesus. A pergunta repetida deixou o apóstolo incomodado. Jesus não duvidada do amor de Pedro, mas precisava enfatizar que não havia nada mais importante para o líder daquele grupo do que a capacidade de amar.

O amor é a virtude maior do Reino futuro que os cristãos esperam habitar. O amor é a única virtude que pode distinguir os cristãos no tempo presente. Está claro então que o amor é a única ponte entre a nossa existência concreta e a experiência transcendental que pode nos aproximar de Deus. É a partir deste entendimento que se constrói um modelo de espiritualidade baseado na militância do amor.

(Amor nao é sentimento. Sentimento é indicador, é produto. Gostar ou nao.)

2 comentários:

  1. João,

    Invadi seu espaço a convite do Ronaldo que disse ontem : "vai lá, Sandra. Meu texto vai revolucionar a blogosfera. Tá no blog do João".

    Gosto da visão que o Ronaldo tem do amor, às vezes sem noção, mas é o Ronaldo né? =)

    Voltarei aqui, João. Acho fino saber o que escreve Dom João Helder :)

    "Está dito. Felicidade não se encontra em algum lugar, não se compra com tesouros, não é um estado de espírito, tampouco se traduz em um jogo no qual nossa tarefa é buscar no tabuleiro as casas pintadas de alegrias e fugir das casas que escondem as tristezas. Não precisamos jogar dados para sermos felizes. Diríamos que felicidade seja avançar pelo tabuleiro com serenidade e sabedoria, vencendo todas as casas que se apresentarem"

    Ele é bom, isso irrita =)


    beijos

    Sandra Leite

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  2. Oi Sandra, bem vinda ao blog. Eu também fiquei impressionado com o texto do Ronaldo, e também do Eduardo. É um privilégio poder contar com amigos deste naipe :-)

    A ideia do blog foi de compartilhar primeiro com a familia e depois com os amigos os textos que eu garimpo e gosto de ler. Espero que vc também possa gostar dos mesmos.

    Abraços

    João Helder

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