Por Jonathan Menezes
Escrevi um artigo há certo tempo, falando de modo resumido sobre Henri Nouwen como um modelo de vida e espiritualidade radicais, tratando um pouco de sua origem, formação, e de alguns fatos marcantes de sua trajetória e pensamento (1).
Não menos resumidamente, quero aqui partilhar algo mais sobre Nouwen só que de um jeito mais pessoal — forma predominante em seus escritos. Como eu o enxergo? Por que me tornei tão fascinado por sua vida e escritos? Que coisas tenho aprendido com ele?
Quem foi Nouwen?
Usando uma expressão de Zygmunt Bauman (2), para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas, por conectar-se e relacionar-se. Parte de sua veia artística está em ter conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, em suas próprias palavras, no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer amigos, criar comunidade, partilhar histórias” (3).
Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas mais naturais da vida — como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar, morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro e à singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações de um modo às vezes até constrangedor pra quem o lê.
Foi um discípulo radical e apaixonado por Jesus. Extremamente consciente de sua dependência de Deus e também de seu inacabamento, nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o que o Senhor queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na travessia e na escuridão”. O mais impressionante é que tanto a luz quanto a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para muitas pessoas.
Por que Nouwen?
Porque em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura recheada de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento sincero de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência foi um protesto contra o superficialismo e um rompimento com os dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência frágil e de uma melancolia esperançosa.
O que aprendi com Nouwen?
Dividirei esta breve incursão naquilo que aprendi com Nouwen por temas.
1. Vocação. Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confirme e capacite — o que dá um peso enorme à questão — o processo de despertar para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com Jesus em serviço ao seu reino. Isto significa que a pergunta pela vocação nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre tentando discernir os caminhos. É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os deficientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz” (4).
2. Sofrimento e fragilidade. A vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como poderia ser?) só sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que privar-se da própria vida — e de tudo o que podemos aprender com ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto gente — ou uma gente da mais amarga espécie, dependendo de como o encaramos. O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a, fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo experimentado em minha própria pele. O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo ferido (5).
3. Integridade. Aprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto, da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida, por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a obra de Deus em nós” (6).
4. Alegria e tristeza. Na vida e pensamento de Nouwen, como já disse antes, pode-se notar um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade, vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se conhece o que é tristeza. O próprio Jesus, como Nouwen diz, “foi o homem das dores, mas também o homem da total alegria” (7). Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido” (8).
5. Comunidade. Vida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a comunidade — a partir do desejo que Deus cria em nós: “O Deus que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos semelhantes” (9) — e que se manifesta em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor, compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no conflito, na intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um “gesto humano” que relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a do irmão e da irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo. Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a “vida eucarística” é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome. Essa compreensão permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com familiares e amigos. Ele disse: “Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na sala de estar de meu pai, apenas ele e eu” (10).
A mensagem de Nouwen sobre a comunidade dá o tom de sua espiritualidade: não há um só ser humano que não receba o convite permanente para participar do banquete de celebração do amor do Pai. Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua forma de tomar a cruz.
Notas
(1) Ver: Jonathan MENEZES. “Henri Nouwen”. In: Novos Diálogos. Dicionário de Cristãos Radicais. Disponível em:
(2) BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 70ss.
(3) NOUWEN, Henri. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2003, p. 170.
(4) Id. Gracias. A Latin American Journal. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1993, p. xvii.
(5) Id. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003, p. 10.
(6) Ibid., p. 15.
(7) Id. A Volta do Filho Pródigo. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 128.
(8) Id. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002, p. 42.
(9) Id. Com o coração em chamas. Meditação sobre a vida eucarística. Aparecida, SP: Santuário, 2005, p. 62.
(10) Ibid., p. 09.
Jonathan Menezes Professor de história e teologia na Faculdade Teológica Sul Americana e no ISBL – Centro Educacional Evangélico, em Londrina. É mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina.
@jonmenezes
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