Reflexão bíblica sobre o sofrimento humano
por Harold Segura
1. A dor da tragedia
Passa o tempo e a dor pelo acontecido com o terremoto de Haiti segue aumentando. Diante do desconcerto do mundo inteiro seguem crescendo as estatísticas das milhares de pessoas mortas e nessa medida se anuncia que o pior ainda está por vir. Nos próximos dias, a tragédia mostrará novos rostos económicos, políticos, sociais e dezenas mais de problemas que nos fazem temer pelas pessoas que ficaram vivas. Nos faz doer os mortos e nos preocupam os vivos.
À dor da tragédia se soma também a dor das declarações concedidas por alguns líderes cristãos como o do Tele-evangelista Pat Robertson, que afirmou que o terremoto é uma forma de juizo divino pelas práticas satânicas dos haitianos, ou a do Bispo Católico Jose Ignacio Munilla, de San Sebastián, Espanha, que com evidente falta de sensibilidade cristã disse que havia males piores que o que havia sucedido em Haiti. Também houveram as declarações racistas do cônsul geral do Haiti em São Paulo, George Samuel Antoine que sem saber que estava sendo gravado pela equipe do SBT, disse que a culpa do terremoto que destruiu o Haiti foi do Vodu, religião da origem africana popular naquele país. “Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo... O africano em si tem uma maldição” e afirma que a catástrofe, que vitimou centena de milhares de haitianos, foi boa para o Consulado "A desgraça de lá está sendo uma boa pra gente aqui, fica conhecido”, afirmou o representante do país no Brasil. “Todo lugar que tem africano lá tá f...", completa. Alguns simples exemplos dos muitos que se poderiam citar sobre como se responde à dor e à tragédia com explicações teológicas / religiosas ausentes da solidariedade cristã.
Diante de nossa dor inexplicada e das explicações atrevidas, surge a necessidade de buscar na Bíblia e na teológia cristã respostas que dêem testemunho do caráter amoroso de Deus e seu rosto solidário. Com esse fim, meditaremos no texto de Lucas 13:1-5. Este é um texto que, ainda que não resolva todas nossas dúvidas acerca do porquê do sofrimento humano, nos aproxima de algumas premissas bíblicas para compreender a realidade do mal na existência humana.
2. O que nos diz o texto bíblico? (Lucas 13:1-5 – versão na linguagem de hoje)
1 Naquela mesma ocasião algumas pessoas chegaram e começaram a comentar com Jesus como Pilatos havia mandado matar vários galileus, no momento em que eles ofereciam sacrifícios a Deus.
2 Então Jesus disse: - Vocês pensam que, se aqueles galileus foram mortos desse jeito, isso quer dizer que eles pecaram mais do que os outros galileus?
3 De modo nenhum! Eu afirmo a vocês que, se não se arrependerem dos seus pecados, todos vocês vão morrer como eles morreram.
4 E lembrem daqueles dezoito, do bairro de Siloé, que foram mortos quando a torre caiu em cima deles. Vocês pensam que eles eram piores do que os outros que moravam em Jerusalém?
5 De modo nenhum! Eu afirmo a vocês que, se não se arrependerem dos seus pecados, todos vocês vão morrer como eles morreram.
3. Compreendendo o texto bíblico
- o texto menciona dois eventos diferentes: a tragédia sucedida a um grupo de galileus nas mãos de Pilatos (evento citado pelos interlocutores de Jesus) e um grupo de 18 pessoas que morreram na caida de uma torre (episodio mencionado por Jesus)
- Os dados sobre estes dois episodios não são precisos. Os historiadores propõem algumas conjecturas:
a) O episodio de Pilatos tem a ver com a construção de um aqueduto com o qual o governante propunha melhorar o abastecimento de água. Os Galileus, devido os protestos sociais, alegaram que a construção estava bem, porém reclamaram que se financiara com dinheiro do templo. Pilatos, então, ordenou a seus soldados que se misturasse com a multidão e ao sinal combinado, dispersasse a multidão com as armas que levavam. Foi feito assim, porem se aplicou mais violência do que havia sido combinado e houveram muitas mortes.
b) Com respeito à Torre de Siloé, se sugere que eram trabalhadores de Pilatos no odiado aqueduto. Nesse caso, eram pessoas que ganhavam dinheiro proveniente das ofertas do templo (“dinheiro de Deus”). Quando aconteceu o acidente da torre, as pessoas interpretaram que era um castigo justo de Deus, devido eles haverem aceitado trabalhar neste projeto.
- O problema de fundo é a mentalidade judia predominante naquela época. Eles criam que existia uma relação direta entre pecado e sofrimento. Poblema que um supõe que deveria ter sido resolvido depois com o que está escrito no livro de Jó. Porém não se resolveu; essa mentalidade se manteve até o tempo de Jesus: quem sofre é porque está em pecado? (Jó 4:7; João 9:1-2)
- O versículo 5 aponta para um anúncio profético da destruição de Jerusalém (de fato aconteceu no ano 70 D.C.). Jesús sabia que se a situação nacional não melhorasse, todos iam sofrer uma catástrofe nacional. Quer dizer, mesmo que o sofrimento não é causa direta do pecado, a desordem pecaminosa de uma pessoa ou de uma nação nos expõe a consequências catastróficas.
4. Apropriação do texto para os dias atuais
- se vamos falar de gente má, então devemos incluir a todos. A presuposição teológica das pessoas que estavam falando com Jesús é que os que sofreram a tragedia ocasionada por Pilatos eram maus. Por causa de suas maldades, receberam o sofrimento. Jesús altera essa lógica e propõe outra: eles não sofreram por que eram pecadores. Ele acrescenta que se vamos falar de gente má, então devemos incluir a todos, os que morreram e os que não morreram. Em outras palavras, temos aqui a primeira afirmação teológica derivada do texto: o sofrimento não é um juizo divino originado devido ao pecado dos seres humano. Não se pode acusar a uma pessoa como má (pedadora e culpavel) por que está sofrendo. Neste sentido, pedadores somos todos nós.
- se é que vamos falar da origem do sofrimento, então vamos às raízes. A raiz, ja dissemos, não é a culpabilidade pecaminosa do que sofre. Jesús aprofunda na raiz e aponta que o sofrimento tem também uma origem humana. Neste caso, Jesús usa a expressão: “se não se arrependerem” (13:3,5) para demonstrar que existem tragedias que podemos evitar quando mudamos de atitude e modificamos certos atos. Como podemos negar que muitas das tragedias mal chamadas de naturais tem uma razão política, ou no fundo provém de uma injustiça histórica? Nada de graça é a alusão à Pilatos no inicio do texto. Jesus não sai em defesa do governante para dizer que ele não é culpado. O povo sabia que por mãos de Pilatos se haviam produzidos muitos sofrimentos. O mesmo Jesus ia estar nas mãos de Pilatos alguns anos depois. De modo que, o elemento político surge aqui com muita claridade. Elemento que explica grande parte das tragedias dos povos mais pobres.
- se vamos falar de soluções, então tenhamos em conta que todos podemos participar delas. Muitos males são possíveis de evitar. Certamente, hoje os especialistas na atenção às emergencias fazem a diferença entre “desastres naturais” e “fenômenos naturais”. Os desastres não são naturais, pois são os fenômemos que os produzem. Em muitos casos, existem fenômenos naturais que não causam tantos desastres quando são feitas as devidas precauções. Em fim, o que se pode afirmar aqui é fato que muitas tragedias (não todas) podem ser evitadas quando se tomam certas decisões a tempo, incluídas as decisões políticas e a prática da justiça social. En nosso texto, Jesus chama a atenção sobre algumas mudanças que poderiam evitar acontecimentos ainda mais tristes e lamentaveis. Ele faz um chamado para fazer algo a tempo de evitar piores tragedias.
- se é que realmente nos interessa o sofrimento das pessoas, façamos algo por elas. O sofrimento humano não serve somente para animadas conversas teológicas ou filosóficas. Estas, ainda que tem o seu valor, não são em si a resposta cristã. O cristão diante do sofrimento não deve discutir sobre o sofrimento, mas atuar com solidariedade e compaixão cristã.
As pessoas que vieram a Jesus chegaram com uma grande inquietação conceitual; Jesús mudou o tom das conversas para transforma-la num convite à ação e à mudança. Quando uma parte da humanidade sofre, nós, como seguidores de Jesus, não somente nos perguntamos porque elas sofrem, mas principalmente atuamos para aliviar o sofrimento e trabalhar a favor de um mundo mais justo e equitativo... onde Pilatos não sacrifique mais gente e onde todos possamos mudar para evitar tragedias futuras.
5. Uma oração por Haiti (Irmão Alois, Igreja da Reconciliação, Taizé. Janeiro 2010)
Deus, nossa esperança,
te confiamos as vítimas do terremoto no Haití
desconcertados pelo imcompreensível sofrimento de inocentes,
te pedimos que inspires os corações daqueles que buscam aportar a ajuda tão indispensável.
Conhecemos a fé profunda do povo haitiano.
Assiste aos que morrem, fortifica aos que estão abatidos,
Consola os que choram,
Derrama teu Espírito de compaixão sobre este povo tão sofrido.
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