sábado, 23 de abril de 2011

Podeis beber deste cálice?

Por Henri J.M. Nouwen


A pergunta

Neste artigo quero contar-lhes a historia do cálice. Não se trata de minha história pessoal, mas a história da vida.

Quando Jesus pergunta a seus amigos Tiago e João, os filhos de Zebedeu: “podeis beber do cálice de amargura que eu vou beber?”, Ele faz uma pergunta que aponta diretamente ao coração do meu sacerdócio e da minha vida como pessoa. Fazem anos, quando eu mantinha em minhas mãos aquele precioso cálice, não me parecia difícil responder a essa pergunta. A mim, um sacerdote recém ordenado, cheio de ideias e de ideais, a vida me parecia rica em promessas. Me sentia impaciente para poder beber daquele cálice!

Hoje, sentado em frente a uma mesa baixa, rodeado por homens e mulheres com problemas mentais, e pelos que os atendem, e oferecendo-lhes os cálices de vinho, servido em cristal, a mesma pergunta se converteu em um desafio espiritual. Posso, ou podemos beber o cálice que Jesus bebeu?

Todavia recordo o dia, fazem uns poucos anos, quando se leu durante a Eucaristia a história em que Jesus suscita essa pergunta. Eram as oito e meia da manhã, e uns trinta membros da comunidade de Daybreak estavam reunidos na pequena capela do sótão. De repente as palavras “podeis beber deste cálice?” ressoaram nos meus ouvidos como a flecha afiada de um caçador. Soube naquele momento, como fruto de uma iluminação interior, que fazer esta pergunta seriamente poderia mudar radicalmente nossas vidas. É a pergunta que tem o poder de abrir como uma carga de profundidade um coração endurecido e deixar descoberto os tendões da vida espiritual.

“podeis beber desde cálice? Podeis beber até as últimas gotas? És capaz de saborear todas as tristezas e alegrias? Podeis viver a vida em sua plenitude, seja o que seja o que te espera?” Eu me dei conta de que isso era o sentido profundo da pergunta.

Porém, porque devemos beber este cálice? Há tanta dor, tanta angústia, tanta violência! Por que devemos beber este cálice? Não seria muito mais fácil viver com normalidade nossas vidas com um mínimo de sofrimento e um máximo de prazer?

Depois da leitura, escolhi espontaneamente uma das grandes taças de cristal que se achavam sobre a mesa em frente a mim, e olhando aos que me rodeavam, alguns dos quais apenas podiam andar, falar, ouvir ou ver, disse: “Podemos sustentar o cálice da vida em nossas mãos? Podemos levanta-lo para que os demais o vejam, e podemos bebê-lo até o final?” beber o cálice é muito mais que tragar seu conteúdo, qualquer que seja, do mesmo modo que partir o pão é muito mais que corta-lo em pedaços. Beber o cálice da vida exige mantê-lo firmemente entre nossas mãos, levantá-lo e bebê-lo. É a celebração completa do ser humano.

Podemos manter nossa vida, levantar o cálice e bebê-lo como fez Jesus? em alguns dos que me rodeavam , podíamos apreciar que eram conscientes do que se dizia, mas em mim se deu um profundo conhecimento da verdade. A pergunta de Jesus me havia inspirado uma nova linguagem com que falar sobre minha vida e sobre as vidas dos que me rodeavam. Durante muito tempo, depois desta simples Eucaristia da manhã, segui escutando a pergunta de Jesus: “Podeis beber o cálice de amargura que vou beber?” Somente o fato de deixar que a pergunta calara em mim, me fez sentir muito incômodo. Mas me dei conta de que tinha que começar a viver com ela.

Um cálice, um corpo

No dia 21 de Julho de 1997 se cumpriram quarenta anos desde que o Cardeal Bernad Alfrink me ordenou sacerdote e meu tio Anton me deu o cálice de ouro.
Na manhã seguinte celebrei minha primeira missa na capela das irmãs do seminário. Eu estava de pé em frente ao altar, dando minhas costas às irmãs que tinham sido boas comigo durante meus seis anos de estudos de filosofia e teologia. Li lentamente em latim todas as leituras e orações. Durante o ofertório, levantei o cálice com muito cuidado. Depois da consagração o ergui acima de minha cabeça, para que as irmãs pudessem vê-lo. E durante a comunhão, depois de ter tomado o pão consagrado, bebi-o, o único que era permitido fazer.

Foi uma experiência íntima e mística. A presença de Jesus era mais real para mim que de qualquer amigo. Depois, me ajoelhei durante um bom tempo e me senti constrangido pela graça de meu sacerdócio.

Durante os quarenta anos que se seguiram, tenho celebrado a Eucaristia diariamente com muito poucas exceções, e não posso conceber minha vida sem essa forte experiência de comunhão íntima com Jesus. Certamente que tudo tem mudado. Hoje me sento numa mesa baixa, em círculo com homens e mulheres simples. Todos lemos e rezamos em inglês. Quando se põem sobre a mesa as ofertas de pão e vinho, se toma o vinho em grandes taças de cristal, que eu e os ministros da Eucaristia, colocamos sobre o altar. Durante a oração eucarística o pão e as taças são levantadas para que todos possam ver as ofertas consagradas e experimentar que Cristo está realmente entre nós. Depois, o corpo e o sangue de Cristo nos são oferecidos a todos como pão e vinho. E quando nos oferecemos a taça uns aos outros nos olhamos nos olhos e dizemos: “o sangue de Cristo”.

Este acontecimento diário, tem aprofundado nossa vida de comunidade durante anos e nos tem feitos conscientes de que o que vivemos é uma parte integrante do grande mistério da morte e ressurreição de Cristo. Esta simples celebração, quase escondida no sótão de nossa pequena casa de oração, faz possível viver nosso dia, não como uma serie de eventos e encontros de sorte, mas como algo criado pelo Senhor para fazer-se presente entre nós. Como tem mudado as coisas! E tudo continua o mesmo! Fazem quarenta anos, não podia imaginar ser um sacerdote do jeito que sou agora. Porém ainda é a contínua participação no sacerdote de compaixão de Jesus que faz com que estes quarenta anos pareçam como uma grande, uma bonita Eucaristia, um ato glorioso de petição, louvor e ação de graças.

O cálice dourado se converteu em uma taça de cristal, porém o que contém continua sendo o mesmo. É a vida de Cristo e nossa vida, unidas numa só. Quando bebemos o cálice, bebemos do cálice que Jesus bebeu, mas também bebemos nosso próprio cálice. Esse é o grande mistério da Eucaristia. O cálice de Jesus, cheio de sua vida, derramada por nós e por toda a humanidade, cheio com nosso próprio sangue, se converteu num único cálice. Quando bebemos este cálice juntos, assim como bebeu Jesus, somos transformados em um só corpo do Cristo vivo, sempre morrendo e sempre ressuscitando para a salvação do mundo.

Tradução livre da introdução e epílogo do livro – Puesdes beber este cáliz?, de Henri J.M. Nouwen

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