Por Harold Segura
Monsenhor Óscar Arnulfo Romero
Sua última missa foi na segunda-feira, 24 de março de 1980. Às seis e vinte e cinco da tarde, no momento do ofertório, quando o pão e o vinho são apresentados ao Senhor antes de ser consagrado pelo oficiante, um franco-atirador mirou nele, e com a destreza de um criminoso treinado, assassinou Monsenhor Óscar Arnulfo Romero.
Com um tiro na altura do coração, pretenderam dar fim ao profeta do povo que um dia antes, na homilia dominical na Catedral de San Salvador, havia feito um chamado aos homens do exército, às bases da Guarda Nacional e da Polícia para que deixassem de matar o seu povo. Disse: “Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a lei de Deus... Já é tempo de recuperarem sua consciência e obedecerem antes à sua consciência que à ordem do pecado”. E acrescentou: “Queremos que o governo leve a sério que de nada servem as reformas que vão tingidas de sangue”.
Seu delito foi condenar as infâmias do governo, denunciar a violência das forças militares e reclamar justiça para seu povo; e pagou esse delito com a sua vida. Seus inimigos cobraram seu atrevimento profético silenciando sua voz naquela tarde, enquanto cumpria com seu dever de pastor na capela do Hospital da Divina Providência. Suas demandas tornaram-se inaceitáveis para os poderosos. Sua pregação em defesa dos mais necessitados não foi tolerada pelos opressores e violentos.
Sentir com a igreja
Hoje, o legado espiritual do Arcebispo de San Salvador ainda está vigente. Sua ação pastoral esteve orientada, desde o início de sua nomeação em 23 de fevereiro de 1977, a acompanhar seu povo nas situações de miséria e de morte. Seu lema foi “Sentir com a Igreja”. Isso significou estar ao lado da gente mais necessitada, ainda que isso não tivesse o respaldo da hierarquia da igreja e muito menos do governo de plantão. Pôs a Arquidiocese a serviço da paz e da reconciliação em um momento no qual a situação política e social de seu país era extremamente difícil e se complicava ainda mais pela nova fraude eleitoral que pôs no poder outro militar, o General Carlos Humberto Romero.
Monsenhor esteve com as pessoas. Foram incontáveis suas visitas pastorais. Ia onde era convidado, mesmo aos mais longínquos rincões de El Salvador. Comparecia, correndo os riscos em um país em guerra civil. Não perdia a oportunidade para estar com as pessoas, em especial com os mais pobres. Gostava de dialogar com os membros da comunidade aonde ia e escutar suas opiniões. Dessa maneira formou muitas comissões de trabalho popular e equipes de serviço cristão. Na capital, serviu como mediador de conflitos e como voz dos mais fracos. Criou um escritório de defesa dos direitos humanos e abriu as portas da igreja para dar refúgio às centenas de camponeses que fugiam da perseguição no campo. O povo reconheceu nele um pastor e servo identificado com suas dores e um defensor de seus direitos. Isso foi o que quis ser: “Quero ser servo de Deus e de vocês... Sou simplesmente o pastor, irmão, amigo do povo… Aquele que estiver em conflito com o povo estará em conflito comigo”.
Conversão a tempo
Mas Monsenhor não foi sempre assim. Sua primeira paróquia foi a de Anamoros, no leste do país, de onde foi transferido pouco tempo depois para a cidade de San Miguel, situada à 138 Km da capital. Neste lugar desenvolveu, desde 1944, seu trabalho pastoral por mais de vinte anos. Foi conhecido por sua dedicação convencional à sua congregação, por sua piedade, por sua vida de oração, mas não ainda por um compromisso social relevante. Até houve aqueles que o qualificaram de “reacionário, intolerante e tradicionalista até a morte”. Como os seus inimigos posteriores o prefeririam assim para sempre!
Em 1966, foi eleito Secretário da Conferência Episcopal de El Salvador. Sua nomeação não foi bem recebida pelos setores progressista da igreja, os que conheciam sua tradição conservadora e sabiam de suas intenções de desviar os ares de renovação que vinham soprando desde o Concílio Vaticano II. Seus enfoques como secretário do episcopado e como diretor do jornal Orientación não fizeram mais do que confirmar estas suspeitas. Mas em 1974 foi nomeado Bispo da Diocese de Santiago de María, em Usulután, e ali começou a mudança.
Em Santiago de María, uma diocese com dois milhões de habitantes e com não mais do que vinte paróquias, teve a oportunidade de conhecer a partir de outro ângulo a realidade salvadorenha. Ali notou a repressão, a perseguição política de um governo ilegítimo, a miséria e a exploração na qual viviam os pobres. Encontrou-se com novas e diferentes realidades sociais que exigiam outras linhas de ação pastoral. Em 21 de junho de 1975, a Guarda Nacional assassinou cinco camponeses em Las Tres Calles e, ainda que não tenha feito uma denúncia pública como algumas pessoas lhe pediram, escreveu uma carta exaltada ao presidente, Coronel Arturo Armando Molina: “Agora, Senhor Presidente, depois de ter convivido com esta dor, semeada por aqueles que deveriam ser inspiração de confiança e segurança de nosso nobre campesinato, cumpro com meu dever de expressar ao Senhor meu respeitoso mas firme protesto como bispo da Diocese, pela forma com que um “corpo de segurança” se atribui indevidamente o direito de matar e maltratar”. Ao massacre de Las Tres Calles se uniram outros fatos que lhe fizeram refletir e tomar decisões às quais não estava acostumado até então.
Quando foi nomeado Arcebispo de San Salvador ainda contava com o favor do governo e dos grupos de poder que haviam sido seus amigos. Mas uma semana depois, em 12 de março de 1977, aconteceu algo que o mudaria para sempre: foi assassinado seu amigo querido, o padre jesuíta Rutilio Grande. Monsenhor foi outro a partir daí. Ameaçou o governo com o fechamento das escolas e com a ausência da Igreja Católica em atos públicos. “Quando vi Rutilio morto, pensei: se o mataram por fazer o que fazia, me cabe andar pelo mesmo caminho... Mudei, sim, mas também dei a volta, retornei.” Mudou em favor do seu povo e contra aqueles que com o poder das armas impunham sua vontade caprichosa. Optou pelos pobres, encarou a perseguição com inteireza, deixou que sua voz de profeta indignado se escutasse nos altares do poder oligárquico e afirmou sua fé para seguir a Jesus pelo caminho dos desvalidos.
Jesus, razão de sua esperança
As convicções de Monsenhor estiveram enraizadas na essência mesma do evangelho e em sua fidelidade à pessoa de Jesus. Disse várias vezes: “Jesus é a fonte da esperança. Apóia-se em Jesus o que prego. Em Jesus está a verdade do que estou dizendo…a opção preferencial pelos pobres não é demagogia, é puro evangelho...esta é a transcendência sem a qual não é possível uma perspectiva de justiça social: Cristo presente entre os mais pequenos”. Romero — como chamavam seus amigos e agora todo o povo — não foi um mero ativista social de inspiração política, nem um caudilho popular que exaltava as massas buscando poder pessoal. “Jamais me vi como um líder”, disse na homilia pronunciada em 28 de setembro de 1977, “Só há um líder: Cristo Jesus”. Ele era antes de tudo um crente para quem Deus, longe de ser uma palavra vazia ou uma realidade abstrata, é a razão de ser da vida e horizonte último da justiça, a paz, o amor e a verdade.
A espiritualidade de Monsenhor Romero é sua maior herança para os cristãos da América Latina e do mundo. Creu em Deus à maneira de Jesus. Para ele, estar em comunhão com Deus, pregar sobre Deus e orar a Deus era, antes de tudo, tornar real e efetiva a vontade desse Deus aqui mesmo, nesta terra de dores e alegrias, angústias e esperanças. Lutou contra as atrocidades dos violentos, contra os abusos dos governantes, contra a indiferença dos ricos e contra o egoísmo de todos porque, para ele, a guerra, o despotismo e a resignação são pecado — formas de negar a vontade do Criador.
Mais presente do que nunca sua vida é agora uma lição viva e seu assassinato, a aparente vitória daqueles que tentaram matá-lo. Dias antes que o assassino disparasse, havia dito na Catedral: “Fui frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhes que, como cristão, não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”. E referindo-se a outros mártires caídos pelas mesmas armas, havia afirmado: “Quiseram matá-los e estão mais presentes do que antes no povo”.
Mais de um quarto de século depois, Monsenhor está mais presente do que antes no meio do povo salvadorenho, como ele tinha querido. Seu sangue, junto ao de todos os inocentes “desde Abel, o justo, até Zacarias, filho de Berequias” (Mateus 23.35) clama por justiça.
* Em 24 de março, cumpriu-se o aniversário do assassinato de Óscar Arnulfo Romero. Lupa Protestante (www.lupaprotestante.com) recuperou de seus arquivos este artigo de Harold Segura, escrito em 2005, que agora publicamos em português.
Harold Segura Harold é teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã (Encontro Publicações, 2007) e de Para que Serve a Espiritualidade? (Ultimato, 2010).
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