sábado, 30 de abril de 2011

Eu também não te condeno



Por Ed René Kivitz

Pode procurar que você não vai achar. Não importa aonde vá, estou absolutamente convencido de que há duas coisas que você nunca vai achar. Você pode correr o mundo e o tempo, e tenho certeza que jamais conseguirá achar alguém que não se envergonhe de algo em seu passado. Para qualquer lugar que você vá, lá estarão elas, as pessoas que gostariam de apagar um momento, uma fase, um ato, uma palavra, um mínimo pensamento. Todo mundo tenta disfarçar, e certamente há aqueles que conseguem viver longos períodos sem o tormento da lembrança. Mas mesmo estes, quando menos esperam são assombrados pela memória de um ato de covardia, um gesto de pura maldade, um desejo mórbido, um abuso calculado, enfim, algo que jamais deveriam ter feito, e que na verdade, gostariam de banir de suas histórias ou, pelo menos, de suas recordações.

Isso é uma péssima notícia para a humanidade, mas uma ótima notícia para você: você não está sozinho, você não está sozinha. Inclusive as pessoas que olham em sua direção com aquela empáfia moral e sugerem cinicamente que você é um ser humano de segunda ou terceira categoria, carregam uma página borrada em sua biografia, grampeada pela sua arrogância e selada pelo medo do escândalo, da rejeição e da condenação no tribunal onde a justiça jamais é vencida. Você não está sozinho. Você não está sozinha. Não importa o que tenha feito ou deixado de fazer, e do que se arrependa no seu passado, saiba que isso faz de você uma pessoa igual a todas as outras: a condição humana implica a necessidade da vergonha.

A segunda coisa que você nunca vai encontrar é um pecado original. Não tenha dúvidas, o mal que você fez ou deixou de fazer está presente em milhares e milhares de sagas pessoais. Não existe algo que você tenha feito ou deixado de fazer que faça de você uma pessoa singular no banco dos réus – ao seu lado estão incontáveis réus respondendo pelo mesmíssimo crime. Talvez você diga, “é verdade, todos têm do que se envergonhar, mas o que eu fiz não se compara ao que qualquer outra pessoa possa ter feito”. Engano seu. O que você fez ou deixou de fazer não apenas se compara, como também é replicado com absoluta exatidão na experiência de milhares e milhares de outras pessoas. Isso significa que você jamais está sozinho, jamais está sozinha, na fila da confissão.

Talvez por estas razões, a Bíblia Sagrada diz que devemos confessar nossas culpas uns aos outros: os humanos não nos irmanamos nas virtudes, mas na vergonha. Este é o caminho de saída do labirinto da culpa e da condenação: quando todos sussurrarmos uns aos outros “eu não te condeno”, ouviremos a sentença do Justo Juiz: “ninguém te condenou? Eu também não te condeno”.

É isso, ou o jogo bruto de sermos julgados com a medida com que julgamos. A justiça do único justo reveste os que têm do que se envergonhar quando os que têm do que se envergonhar desistem de ser justos.

sábado, 23 de abril de 2011

Podeis beber deste cálice?

Por Henri J.M. Nouwen


A pergunta

Neste artigo quero contar-lhes a historia do cálice. Não se trata de minha história pessoal, mas a história da vida.

Quando Jesus pergunta a seus amigos Tiago e João, os filhos de Zebedeu: “podeis beber do cálice de amargura que eu vou beber?”, Ele faz uma pergunta que aponta diretamente ao coração do meu sacerdócio e da minha vida como pessoa. Fazem anos, quando eu mantinha em minhas mãos aquele precioso cálice, não me parecia difícil responder a essa pergunta. A mim, um sacerdote recém ordenado, cheio de ideias e de ideais, a vida me parecia rica em promessas. Me sentia impaciente para poder beber daquele cálice!

Hoje, sentado em frente a uma mesa baixa, rodeado por homens e mulheres com problemas mentais, e pelos que os atendem, e oferecendo-lhes os cálices de vinho, servido em cristal, a mesma pergunta se converteu em um desafio espiritual. Posso, ou podemos beber o cálice que Jesus bebeu?

Todavia recordo o dia, fazem uns poucos anos, quando se leu durante a Eucaristia a história em que Jesus suscita essa pergunta. Eram as oito e meia da manhã, e uns trinta membros da comunidade de Daybreak estavam reunidos na pequena capela do sótão. De repente as palavras “podeis beber deste cálice?” ressoaram nos meus ouvidos como a flecha afiada de um caçador. Soube naquele momento, como fruto de uma iluminação interior, que fazer esta pergunta seriamente poderia mudar radicalmente nossas vidas. É a pergunta que tem o poder de abrir como uma carga de profundidade um coração endurecido e deixar descoberto os tendões da vida espiritual.

“podeis beber desde cálice? Podeis beber até as últimas gotas? És capaz de saborear todas as tristezas e alegrias? Podeis viver a vida em sua plenitude, seja o que seja o que te espera?” Eu me dei conta de que isso era o sentido profundo da pergunta.

Porém, porque devemos beber este cálice? Há tanta dor, tanta angústia, tanta violência! Por que devemos beber este cálice? Não seria muito mais fácil viver com normalidade nossas vidas com um mínimo de sofrimento e um máximo de prazer?

Depois da leitura, escolhi espontaneamente uma das grandes taças de cristal que se achavam sobre a mesa em frente a mim, e olhando aos que me rodeavam, alguns dos quais apenas podiam andar, falar, ouvir ou ver, disse: “Podemos sustentar o cálice da vida em nossas mãos? Podemos levanta-lo para que os demais o vejam, e podemos bebê-lo até o final?” beber o cálice é muito mais que tragar seu conteúdo, qualquer que seja, do mesmo modo que partir o pão é muito mais que corta-lo em pedaços. Beber o cálice da vida exige mantê-lo firmemente entre nossas mãos, levantá-lo e bebê-lo. É a celebração completa do ser humano.

Podemos manter nossa vida, levantar o cálice e bebê-lo como fez Jesus? em alguns dos que me rodeavam , podíamos apreciar que eram conscientes do que se dizia, mas em mim se deu um profundo conhecimento da verdade. A pergunta de Jesus me havia inspirado uma nova linguagem com que falar sobre minha vida e sobre as vidas dos que me rodeavam. Durante muito tempo, depois desta simples Eucaristia da manhã, segui escutando a pergunta de Jesus: “Podeis beber o cálice de amargura que vou beber?” Somente o fato de deixar que a pergunta calara em mim, me fez sentir muito incômodo. Mas me dei conta de que tinha que começar a viver com ela.

Um cálice, um corpo

No dia 21 de Julho de 1997 se cumpriram quarenta anos desde que o Cardeal Bernad Alfrink me ordenou sacerdote e meu tio Anton me deu o cálice de ouro.
Na manhã seguinte celebrei minha primeira missa na capela das irmãs do seminário. Eu estava de pé em frente ao altar, dando minhas costas às irmãs que tinham sido boas comigo durante meus seis anos de estudos de filosofia e teologia. Li lentamente em latim todas as leituras e orações. Durante o ofertório, levantei o cálice com muito cuidado. Depois da consagração o ergui acima de minha cabeça, para que as irmãs pudessem vê-lo. E durante a comunhão, depois de ter tomado o pão consagrado, bebi-o, o único que era permitido fazer.

Foi uma experiência íntima e mística. A presença de Jesus era mais real para mim que de qualquer amigo. Depois, me ajoelhei durante um bom tempo e me senti constrangido pela graça de meu sacerdócio.

Durante os quarenta anos que se seguiram, tenho celebrado a Eucaristia diariamente com muito poucas exceções, e não posso conceber minha vida sem essa forte experiência de comunhão íntima com Jesus. Certamente que tudo tem mudado. Hoje me sento numa mesa baixa, em círculo com homens e mulheres simples. Todos lemos e rezamos em inglês. Quando se põem sobre a mesa as ofertas de pão e vinho, se toma o vinho em grandes taças de cristal, que eu e os ministros da Eucaristia, colocamos sobre o altar. Durante a oração eucarística o pão e as taças são levantadas para que todos possam ver as ofertas consagradas e experimentar que Cristo está realmente entre nós. Depois, o corpo e o sangue de Cristo nos são oferecidos a todos como pão e vinho. E quando nos oferecemos a taça uns aos outros nos olhamos nos olhos e dizemos: “o sangue de Cristo”.

Este acontecimento diário, tem aprofundado nossa vida de comunidade durante anos e nos tem feitos conscientes de que o que vivemos é uma parte integrante do grande mistério da morte e ressurreição de Cristo. Esta simples celebração, quase escondida no sótão de nossa pequena casa de oração, faz possível viver nosso dia, não como uma serie de eventos e encontros de sorte, mas como algo criado pelo Senhor para fazer-se presente entre nós. Como tem mudado as coisas! E tudo continua o mesmo! Fazem quarenta anos, não podia imaginar ser um sacerdote do jeito que sou agora. Porém ainda é a contínua participação no sacerdote de compaixão de Jesus que faz com que estes quarenta anos pareçam como uma grande, uma bonita Eucaristia, um ato glorioso de petição, louvor e ação de graças.

O cálice dourado se converteu em uma taça de cristal, porém o que contém continua sendo o mesmo. É a vida de Cristo e nossa vida, unidas numa só. Quando bebemos o cálice, bebemos do cálice que Jesus bebeu, mas também bebemos nosso próprio cálice. Esse é o grande mistério da Eucaristia. O cálice de Jesus, cheio de sua vida, derramada por nós e por toda a humanidade, cheio com nosso próprio sangue, se converteu num único cálice. Quando bebemos este cálice juntos, assim como bebeu Jesus, somos transformados em um só corpo do Cristo vivo, sempre morrendo e sempre ressuscitando para a salvação do mundo.

Tradução livre da introdução e epílogo do livro – Puesdes beber este cáliz?, de Henri J.M. Nouwen

sábado, 16 de abril de 2011

O Legado Espiritual de Martin Luther King Jr.


Por Jonathan Wilson-Hartgrove

Lembrar-se do ícone dos direitos civis significa lembrar-se do seu chamado por Cristo

A escola pública que meu filho JaiMichael frequenta não abre na terceira segunda-feira de janeiro. Como a maioria dos americanos, eles tiram o dia para honrar o Dr. Martin Luther King Jr. No ano passado, eu e meu filho pegamos o ônibus que vai para o centro da cidade no feriado e eu contei a ele a história do Boicote aos ônibus de Montgomery - a história que fez King famoso e deu a ele o Prêmio Nobel da Paz. JaiMichael, ainda no Jardim de Infância, estava mais excitado em andar de ônibus. Mas eu estava tentando descobrir como relembrar um santo quando ele se torna um herói nacional.

A Igreja tem uma longa história de recordar pessoas que seguiram de perto a Jesus na sua própria época e, portanto, nos mostra como é viver com fidelidade nos lugares onde vivemos. Chamar estas irmãs e irmãos de “santos” não é sugerir que eles foram perfeitos, mas reconhecer que suas vidas foram confirmadas por Deus. Muitos dos santos são pessoas que tomaram sua cruz e seguiram a Jesus até a morte que a cruz demanda. Eis porque a Igreja relembra estes santos no dia de sua morte.

A maneira como relembramos King tem tudo a ver se acreditamos que seu momento mais importante foi em 28 de agosto de 1963 ou em 04 de abril de 1968. Em milhares de eventos comunitários e estaduais, o sonho que King compartilhou com os Estados Unidos em 28 de agosto de 1963 será repetido e relembrado. Um país que foi fundado sob os princípios de liberdade e justiça para todos se lembrará de como a justiça foi tanto tempo negada aos afro-americanos, como o movimento dos direitos civis deixou claro que separado não é igual, e como o sonho de King para todas as pessoas vivendo juntas em paz estava “profundamente enraizado no sonho americano”. Nós celebraremos o progresso que foi alcançado com grande luta e sacrifício, tornando possível para um país que um dia escravizou afro-americanos ser agora governado por um afro-americano. E seremos desafiados pelo sonho de King a continuar o trabalho de viver à altura de nossos mais altos valores e convicções mais profundas.

Quando eu penso em JaiMichael, um garoto afro-americano cheio de seus próprios sonhos e promessas, eu me alegro em viver num país que se lembra de King como um herói nacional. Mas como um discípulo de Jesus, quero mais para o meu filho do que o Sonho Americano. Quero que ele seja livre não somente para buscar sua própria felicidade, mas para amar a Deus e seu próximo da forma radical daquele rebelde de Nazaré que salvou o mundo não como um herói nacional, mas como um inimigo do estado crucificado. Eis porque eu quero que meu filho conheça o testemunho de Martin Luther King que sacrificou sua vida em 04 de abril de 1968.

Jesus disse: “Ninguém tem mais amor pelos seus amigos do que aquele que dá a sua vida por eles” (João 15:13, NTLH). A mensagem radical do Evangelho é que “Cristo morreu por nós quando ainda vivíamos no pecado”. Resumindo, Jesus deu Sua vida pelos seus inimigos. Quando prestamos atenção na vida de King como uma vida de discipulado, podemos ver que seu assassinato foi também um sacrifício voluntário de si mesmo por amor aos seus inimigos. Ver a vida de King através das lentes de sua morte é ver como ela foi a imitação de Cristo. Como tal, ela nos ensina algo sobre o que pode significar para nós seguir a Jesus aqui e agora.

A maioria das pessoas sabe que King era um pregador batista. No mundo eclesial no qual foi criado, ele pode ser considerado um prodígio, indo cedo para a faculdade, dominando a arte de falar em público e fazendo doutorado em teologia. Um jovem promissor com uma jovem família, King fez o que a maioria das pessoas em sua posição faria depois de terminar os estudos. Ele foi procura um bom emprego. E encontrou na Igreja Batista da Avenida Dexter, em Montgomery, Alabama.

A Igreja Batista da Avenida Dexter deveria ser o primeiro passo em uma carreira ministerial para o promissor Dr. King. Mas a carreira de King foi interrompida por duas coisas: o movimento de direitos civis e Jesus. Pelo seu próprio relato, o movimento lhe chamou primeiro. Depois que Rosa Parks foi presa por não dar assento a um homem branco num ônibus da cidade, o novo pastor, King, foi drafted para liderar a comunidade afro-americana num boicote do transporte público. Várias semanas na luta, ele tentou abandoná-la. Ele não tinha levado em conta as ameças de morte e 24 horas de reuniões . Depois que sua resignação foi recusada, King logo foi para a prisão. O movimento estava começando a atrapalhar sua carreira.

Então Jesus veio chamar. Ele veio tarde numa noite de inverno, quando King estava dominado pelo medo depois de receber outro telefonema de alguém ameaçando furiosamente sua vida. Na mesa da cozinha, King abaixou sua cabeça frustrado e confuso. Então, segundo o próprio relato de King: “Algo me falou: ‘Você não pode ligar para o papai agora, você não pode ligar para a mamãe. Você tem que buscar aquilo naquela pessoa sobre quem seu pai costumava lhe falar, aquele poder que pode fazer caminho quando não há caminho’”. Na escuridão da noite, Jesus veio lhe chamar. King nunca mais foi mesmo.

King seguiu Jesus de Montgomery a Washington, e o sonho que ele compartilhou com os Estados Unidos uns oito anos depois estava certamente tão enraizado no Evangelho como estava na Constituição dos EUA. Mas porque King estava seguindo a Jesus, ele não poderia parar na sua entrada triunfal em Washington. Ele não poderia descansar quando as multidões estavam encorajando ou quando Lyndon Johnson assinou o Ato dos Direitos de Voto. Ele ainda ouvia a voz do chamado de Jesus para seguir adiante. Assim, ele desafiou o militarismo dos EUA que estava destruindo vidas inocentes no Vietnam. Ele ouviu a voz do profeta Amós; assim ele assumiu a Campanha dos Pobres. Já um herói nacional, mudou-se com sua família para uma das piores vizinhanças de Chigago para caminhar com os pobres na suas lutas.

Todo o tempo, King sabia que estava marcado para morrer. Não só ele continuou a receber ameaças de morte, como se tornou cada vez mais consciente do poderes atrozes que defendiam o status quo com violência. King sabia que desafiar aqueles poderes é tomar sua cruz. Ele o fez — e com amor — porque sua vida tinha sido reclamada por Jesus. Este é o legado que recordamos em 04 de abril.

Depois de ler uma história dos Ursos Berenstain ou de um livro de futebol, leio para o meu filho toda noite a história de um santo. Algumas delas são longas e ele, ocasionalmente, perde o interesse ou cai no sono. Mas quando chego ao final, ele sempre faz a mesma pergunta: “Como ele morreu, papai?”. Como todos os santos, compreendemos melhor o legado de King se recordarmos sua vida à luz de sua morte.

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Publicado originalmente na revista Relevant - http://www.relevantmagazine.com/life/current-events/features/24131-the-spiritual-legacy-of-martin-luther-king-jr

Jonathan Wilson-Hartgrove Jonathan é de Carolina do Norte, formado pela Eastern University e Duke Divinity School, pastor associado da histórica St. Johns Baptist Church. A Casa Rutba, onde Jonathan vive com sua esposa Leah, seu filho JaiMichael e outros amigos, é uma nova comunidade monástica que ora, come e convive, acolhendo vizinhos e sem-tetos. Jonathan dirige a School for Conversion, um seminário alternativo que oferece cursos pelos EUA, é editor de New Monastic Library Series (Cascade Books) e editor associado de Resources for Reconciliation Series (InterVarsity Press). Suas experiências como membro de uma equipe de Christian Peacemaker Team, pouco antes dos Estados Unidos começarem a bombardear o Iraque em 2003, se tornaram o tema do livro To Baghdad and Beyond (Cascade Books: 2005), que descreve a conversão do casal ao “Novo Monasticismo”.

sábado, 9 de abril de 2011

Força para viver

Por Ed René Kivitz


"Além da dificuldade de saber a direção, falta a cada um a força e a competência de seguir em frente."

Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.

Viver é muito perigoso, dizia Guimarães Rosa pela boca do memorável Riobaldo. A vida tem mesmo seus altos e baixos e, além da dificuldade de saber a direção, falta a cada um a força e a competência de seguir em frente. Os obstáculos se multiplicam. A vida é contingente: cheia de imprevistos e surpresas, boas e ruins.
Uma proposta para morar longe, um diagnóstico inesperado, a chegada de um bebê, um assalto, um desmoronamento, o cancelamento do vôo, a festa de aniversário, os amigos ao redor da mesa e a demissão inesperada. Além disso, a doença da mãe, o imposto de renda, as aventuras dos filhos e o sobrepeso, obesidade mesmo, denunciada pelo espelho e pela calça que já não se usa mais. E tem também a teimosia dos vícios, as dores da alma, a insegurança emocional, os conflitos relacionais, a culpa, o medo, a ansiedade e a síndrome do pânico ? ai que medo. Tem que arrumar o quarto, buscar a roupa na lavanderia, votar para presidente e superar o divórcio. O show não pode parar. E porque viver é muito perigoso, aprender a viver é imperativo.

Como enfrentar a travessia? Já que navegar é preciso e viver não é preciso, como dizia o poeta português. Viver é necessário. É preciso viver, não há que desistir da vida. Mas viver é perigoso, justamente porque não é preciso ? não é exato. Não é possível singrar a vida como quem corta os mares. A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá, disse o Chico brasileiro.

Acho que foi por isso que o sábio Salomão começou a escrever seu Eclesiastes. Queria aprender a viver. Dedicou o coração para saber, inquirir e buscar a sabedoria e a razão das coisas. E concluiu que a verdade está no distante e profundo. A vida é mistério. Viver continuará sendo sempre perigoso.
Então apareceu Jesus. Não negou a contingência da vida, nem iludiu os seus com promessas falsas e fantasiosas. Mas apontou um caminho. Apresentou seu Pai aos homens e os homens ao seu Pai. Autorizou todo mundo a buscar, usar e abusar de seu Pai.

Jesus disse a todos: Chamem pelo Abba. Ele os ouvirá. Falem com ele em meu nome. Batam na porta. Busquem. Peçam. Gritem. Importunem meu Pai, de dia e de noite. A porta se abrirá. Vocês acharão o meu Pai. Vocês receberão respostas. Serão recompensados pela sua busca, jamais ficarão sem galardão. Meu Pai é atento e cuidadoso. Meu Pai é bom. Meu Pai é amor. Não tenham medo dele. Não se escondam dele. Não fujam dele. Corram para os braços dele. Ele cuida de flores e passarinhos. Vai cuidar de vocês. Sigam os meus passos. Foi o que fiz. Fechem a porta do quarto e façam suas orações. Eu atravessei a vida de joelhos. E venci. Eu venci o mundo, eu venci o mal, eu venci a morte. E vocês também poderão vencer. Não desistam. Não tenham medo. Viver é perigoso. Mas a graça do meu Pai é maior que vida.

Fonte: IBAB

domingo, 3 de abril de 2011

Monsenhor Romero: pastor, profeta e mártir latino-americano

Por Harold Segura


Monsenhor Óscar Arnulfo Romero

Sua última missa foi na segunda-feira, 24 de março de 1980. Às seis e vinte e cinco da tarde, no momento do ofertório, quando o pão e o vinho são apresentados ao Senhor antes de ser consagrado pelo oficiante, um franco-atirador mirou nele, e com a destreza de um criminoso treinado, assassinou Monsenhor Óscar Arnulfo Romero.

Com um tiro na altura do coração, pretenderam dar fim ao profeta do povo que um dia antes, na homilia dominical na Catedral de San Salvador, havia feito um chamado aos homens do exército, às bases da Guarda Nacional e da Polícia para que deixassem de matar o seu povo. Disse: “Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a lei de Deus... Já é tempo de recuperarem sua consciência e obedecerem antes à sua consciência que à ordem do pecado”. E acrescentou: “Queremos que o governo leve a sério que de nada servem as reformas que vão tingidas de sangue”.

Seu delito foi condenar as infâmias do governo, denunciar a violência das forças militares e reclamar justiça para seu povo; e pagou esse delito com a sua vida. Seus inimigos cobraram seu atrevimento profético silenciando sua voz naquela tarde, enquanto cumpria com seu dever de pastor na capela do Hospital da Divina Providência. Suas demandas tornaram-se inaceitáveis para os poderosos. Sua pregação em defesa dos mais necessitados não foi tolerada pelos opressores e violentos.
Sentir com a igreja

Hoje, o legado espiritual do Arcebispo de San Salvador ainda está vigente. Sua ação pastoral esteve orientada, desde o início de sua nomeação em 23 de fevereiro de 1977, a acompanhar seu povo nas situações de miséria e de morte. Seu lema foi “Sentir com a Igreja”. Isso significou estar ao lado da gente mais necessitada, ainda que isso não tivesse o respaldo da hierarquia da igreja e muito menos do governo de plantão. Pôs a Arquidiocese a serviço da paz e da reconciliação em um momento no qual a situação política e social de seu país era extremamente difícil e se complicava ainda mais pela nova fraude eleitoral que pôs no poder outro militar, o General Carlos Humberto Romero.

Monsenhor esteve com as pessoas. Foram incontáveis suas visitas pastorais. Ia onde era convidado, mesmo aos mais longínquos rincões de El Salvador. Comparecia, correndo os riscos em um país em guerra civil. Não perdia a oportunidade para estar com as pessoas, em especial com os mais pobres. Gostava de dialogar com os membros da comunidade aonde ia e escutar suas opiniões. Dessa maneira formou muitas comissões de trabalho popular e equipes de serviço cristão. Na capital, serviu como mediador de conflitos e como voz dos mais fracos. Criou um escritório de defesa dos direitos humanos e abriu as portas da igreja para dar refúgio às centenas de camponeses que fugiam da perseguição no campo. O povo reconheceu nele um pastor e servo identificado com suas dores e um defensor de seus direitos. Isso foi o que quis ser: “Quero ser servo de Deus e de vocês... Sou simplesmente o pastor, irmão, amigo do povo… Aquele que estiver em conflito com o povo estará em conflito comigo”.
Conversão a tempo

Mas Monsenhor não foi sempre assim. Sua primeira paróquia foi a de Anamoros, no leste do país, de onde foi transferido pouco tempo depois para a cidade de San Miguel, situada à 138 Km da capital. Neste lugar desenvolveu, desde 1944, seu trabalho pastoral por mais de vinte anos. Foi conhecido por sua dedicação convencional à sua congregação, por sua piedade, por sua vida de oração, mas não ainda por um compromisso social relevante. Até houve aqueles que o qualificaram de “reacionário, intolerante e tradicionalista até a morte”. Como os seus inimigos posteriores o prefeririam assim para sempre!

Em 1966, foi eleito Secretário da Conferência Episcopal de El Salvador. Sua nomeação não foi bem recebida pelos setores progressista da igreja, os que conheciam sua tradição conservadora e sabiam de suas intenções de desviar os ares de renovação que vinham soprando desde o Concílio Vaticano II. Seus enfoques como secretário do episcopado e como diretor do jornal Orientación não fizeram mais do que confirmar estas suspeitas. Mas em 1974 foi nomeado Bispo da Diocese de Santiago de María, em Usulután, e ali começou a mudança.

Em Santiago de María, uma diocese com dois milhões de habitantes e com não mais do que vinte paróquias, teve a oportunidade de conhecer a partir de outro ângulo a realidade salvadorenha. Ali notou a repressão, a perseguição política de um governo ilegítimo, a miséria e a exploração na qual viviam os pobres. Encontrou-se com novas e diferentes realidades sociais que exigiam outras linhas de ação pastoral. Em 21 de junho de 1975, a Guarda Nacional assassinou cinco camponeses em Las Tres Calles e, ainda que não tenha feito uma denúncia pública como algumas pessoas lhe pediram, escreveu uma carta exaltada ao presidente, Coronel Arturo Armando Molina: “Agora, Senhor Presidente, depois de ter convivido com esta dor, semeada por aqueles que deveriam ser inspiração de confiança e segurança de nosso nobre campesinato, cumpro com meu dever de expressar ao Senhor meu respeitoso mas firme protesto como bispo da Diocese, pela forma com que um “corpo de segurança” se atribui indevidamente o direito de matar e maltratar”. Ao massacre de Las Tres Calles se uniram outros fatos que lhe fizeram refletir e tomar decisões às quais não estava acostumado até então.

Quando foi nomeado Arcebispo de San Salvador ainda contava com o favor do governo e dos grupos de poder que haviam sido seus amigos. Mas uma semana depois, em 12 de março de 1977, aconteceu algo que o mudaria para sempre: foi assassinado seu amigo querido, o padre jesuíta Rutilio Grande. Monsenhor foi outro a partir daí. Ameaçou o governo com o fechamento das escolas e com a ausência da Igreja Católica em atos públicos. “Quando vi Rutilio morto, pensei: se o mataram por fazer o que fazia, me cabe andar pelo mesmo caminho... Mudei, sim, mas também dei a volta, retornei.” Mudou em favor do seu povo e contra aqueles que com o poder das armas impunham sua vontade caprichosa. Optou pelos pobres, encarou a perseguição com inteireza, deixou que sua voz de profeta indignado se escutasse nos altares do poder oligárquico e afirmou sua fé para seguir a Jesus pelo caminho dos desvalidos.
Jesus, razão de sua esperança

As convicções de Monsenhor estiveram enraizadas na essência mesma do evangelho e em sua fidelidade à pessoa de Jesus. Disse várias vezes: “Jesus é a fonte da esperança. Apóia-se em Jesus o que prego. Em Jesus está a verdade do que estou dizendo…a opção preferencial pelos pobres não é demagogia, é puro evangelho...esta é a transcendência sem a qual não é possível uma perspectiva de justiça social: Cristo presente entre os mais pequenos”. Romero — como chamavam seus amigos e agora todo o povo — não foi um mero ativista social de inspiração política, nem um caudilho popular que exaltava as massas buscando poder pessoal. “Jamais me vi como um líder”, disse na homilia pronunciada em 28 de setembro de 1977, “Só há um líder: Cristo Jesus”. Ele era antes de tudo um crente para quem Deus, longe de ser uma palavra vazia ou uma realidade abstrata, é a razão de ser da vida e horizonte último da justiça, a paz, o amor e a verdade.

A espiritualidade de Monsenhor Romero é sua maior herança para os cristãos da América Latina e do mundo. Creu em Deus à maneira de Jesus. Para ele, estar em comunhão com Deus, pregar sobre Deus e orar a Deus era, antes de tudo, tornar real e efetiva a vontade desse Deus aqui mesmo, nesta terra de dores e alegrias, angústias e esperanças. Lutou contra as atrocidades dos violentos, contra os abusos dos governantes, contra a indiferença dos ricos e contra o egoísmo de todos porque, para ele, a guerra, o despotismo e a resignação são pecado — formas de negar a vontade do Criador.

Mais presente do que nunca sua vida é agora uma lição viva e seu assassinato, a aparente vitória daqueles que tentaram matá-lo. Dias antes que o assassino disparasse, havia dito na Catedral: “Fui frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhes que, como cristão, não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”. E referindo-se a outros mártires caídos pelas mesmas armas, havia afirmado: “Quiseram matá-los e estão mais presentes do que antes no povo”.

Mais de um quarto de século depois, Monsenhor está mais presente do que antes no meio do povo salvadorenho, como ele tinha querido. Seu sangue, junto ao de todos os inocentes “desde Abel, o justo, até Zacarias, filho de Berequias” (Mateus 23.35) clama por justiça.

* Em 24 de março, cumpriu-se o aniversário do assassinato de Óscar Arnulfo Romero. Lupa Protestante (www.lupaprotestante.com) recuperou de seus arquivos este artigo de Harold Segura, escrito em 2005, que agora publicamos em português.

Harold Segura Harold é teólogo, escritor e coordenador de Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe. Foi um dos oito observadores não católicos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em 2007. É colombiano mas mora há alguns anos em San José, Costa Rica. É autor de Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã (Encontro Publicações, 2007) e de Para que Serve a Espiritualidade? (Ultimato, 2010).
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