sábado, 19 de novembro de 2011

A idolatria do consumo


Por Carlos Queiroz

O espaço urbano trouxe consigo a embalagem e o lixo dos produtos de mercado.

A habitação dos seres humanos em comunidades urbanas é um processo irreversível. Intensificado a partir da Revolução Industrial do século 18, o fenômeno da urbanização logo se mostrou irreversível – 80% da população brasileira, por exemplo, vive nas cidades. E, no espaço urbano, a vida vai se tornado atrativa e ao mesmo tempo complexa. As cidades modernas são um encanto tecnológico: aviões cruzam os céus acima de monumentais blocos de apartamentos; trens e metrôs atravessam trilhos em alta velocidade, enquanto os shoppings, templos suntuosos do consumo, viraram espaços de convivência que exercem uma atração irresistível.

Ao mesmo tempo, o espaço urbano trouxe consigo a embalagem e o lixo dos produtos de mercado. O mundo urbanizado aglutinou e incrementou a violência, acentuando a miséria e popularizando a fome. As metrópoles concentraram a riqueza e criaram novos atores sociais. A criminalidade, fenômeno decorrente das desigualdades e da cegueira social, é um câncer que cresce sem controle nos grandes e pequenos espaços urbanos, acuando seus habitantes e criando guetos impenetráveis ao poder público. E, neste mesmo espaço, homens e mulheres buscam viver com dignidade, mas são impedidos pelos poderes e potestades deste século.

A urbis vai acentuando o individualismo. Na era do narcisismo e da exaltação do ego, cada indivíduo busca uma maneira de existir sem que outros seres humanos lhe perturbem. A automatização cada vez mais distancia possíveis diálogos. Por outro lado, as relações estão fundamentadas na competitividade e no lucro. A própria forma de organização da vida urbana está submetida a regras de produção e consumo. Desse modo, a sociedade urbana divide-se entre os que produzem e possuem poder de compra de um lado; e de outro, aqueles que vivem à margem do sistema econômico. Toda tecnologia é validada, desde que a serviço do capital, para impor a ideologia do consumo.

Nenhum outro contexto mostra de maneira mais clara a divisão entre ricos e pobres que as cidades. E estes lados opostos nem sempre são geográficos. No lado dos abastados, encontramos ruas e avenidas bem pavimentadas, ótimos hospitais e as melhores escolas, bem como casas suntuosas e condomínios exclusivos. Já na banda pobre, encontramos aglomerados habitacionais sem o mínimo de saneamento, becos e ruelas de difícil acesso, escolas abandonadas e postos de saúde sucateados. Nas periferias, homens, mulheres e crianças sobrevivem muitas vezes em condições de carência total. O lado dos excluídos, ou, melhor, os sem lado algum – os “sem eira nem beira” –, estão à margem, à beira: à margem dos direitos, à margem da educação, à margem do trabalho, à margem da dignidade. À beira da fome.

No entanto, esses são seres que parecem mais humanos que os habitantes das zonas douradas. Vivem à margem da competitividade, mas beirando a solidariedade. À margem da acumulação, mas beirando a partilha. À margem do lucro, beiram a gratuidade. À margem do individualismo, mas perto da fraternidade. A ideologia de consumo reboca consigo seus ídolos por meio das religiões organizadas, trazendo de volta deuses que, na natureza essencial, são não-deuses. Só existe um Deus. A idolatria é qualquer sistema, seja econômico, político ou religioso, que nos desvia de Deus e consequentemente nos distancia da fraternidade e do amor entre as pessoas. Enquanto Deus propicia vida para todos, os ídolos geram destruição, violência e morte.
O ídolo de consumo requer que seus adoradores produzam e produzam, saqueando irresponsavelmente a natureza. O ídolo de mercado exige o sacrifício dos que não consomem seus produtos – os pobres, os considerados subumanos pelos devotos da religião materialista de mercado.

E a Igreja no mundo urbano, aquela que atua na mesma ambiência desse consumo desenfreado? Ela corre o risco de ser “mundanizada”, ou seja, de cair na tentação de se organizar segundo os dogmas da sociedade urbanizada: a crença no poder da tecnologia, na capacidade produtiva, na maior valorização nos resultados sacrificando sua fidelidade ao Evangelho e pondo em risco sua integridade de expressar a natureza singular do povo de Deus. Por outro lado, a Igreja pode renovar sua aliança com o Evangelho de Jesus Cristo e os valores do seu Reino – e orar para que esse Reino venha através de suas comunidades de fé. Seu Reino é de justiça e paz.

A oração ensinada por Jesus fala de “Pai nosso” e de “pão nosso”. Ora, pão é um bem material; logo, pode ser acumulado ou socializado. Na sociedade de consumo, ele é a materialização do ídolo que só os consumidores possuem. Por isso, a crise de fome no mundo é uma questão básica de idolatria ao bem de consumo. E a crise econômica é a desarmonia dos ídolos sem neurônios. Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e os seus adoradores. Cabe à Igreja a tarefa de se converter a Deus e resistir ao sincretismo materialista da religião de mercado.

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