sábado, 29 de outubro de 2011

Deus não tem pressa


Por Rev. Sérgio Andrade

"Sede vós também pacientes e fortalecei o vosso coração...".
(Livro deTiago 5.8a)

Deus não conhece a pressa. Todos os movimentos divinos são marcados pelo processo. Olhe, por exemplo, para a criação. Tudo o que Ele fez parece esperar o tempo oportuno. Cada dia é uma nova forma de ser. Tal realidade é gradativa, comum e extraordinária, pois acontece sem que percebamos todas as diferenças geradas em cada instante. Nada é hoje como foi no passado. Por isso, paciência é uma palavra divina.Ela é companheira-irmã da transformação, da maturidade e da esperança.

Há três décadas o ritmo de vida era outro. Uma sensação de que as horas pareciam demoradas tomava conta de muita gente. Os lugares eram mais distantes. As pessoas viviam longe. A comunicação era tão difícil. As estradas permaneciam ruins. O dia era longo. A noite também.

A tecnologia mudou nossas vidas. Aviões mais rápidos, telefones celulares, fornos microondas, internet, aparelhos gps e câmeras de vídeo alteraram a rotina de milhões de pessoas. Os horários de almoço sumiram. A calmaria da noite de descanso foi interrompida pela ligação inesperada. É preciso produzir, viajar, conquistar, receber, ganhar, falar e ouvir.

A Palavra de Deus nos convida a refletir sobre o ritmo e a pressa. Descansar em Deus talvez seja a principal tarefa para aqueles que experimentam ritmos acelerados. Com os corações fortalecidos no Senhor, somos instados a prosseguir com tranquilidade.

É preciso crer no milagre da semente que se planta, ainda que não vejamos o que acontece sob o solo. É importante saber que o Senhor está ao lado daqueles que o temem, ainda que tempestades e estios venham sobre nossas plantações. É renovador o encontro íntimo com Aquele que é capaz de fortalecer o nosso interior para que juntos possamos anunciar o seu Reino.

Ao Senhor agradecemos a oportunidade de servi-lo nestes dias, com paciência e, Nele, sempre firmes!

Rev. Sérgio Andrade
Deão da Catedral Anglicana da SS Trindade - Recife

sábado, 22 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen



Por Jonathan Menezes

Escrevi um artigo há certo tempo, falando de modo resumido sobre Henri Nouwen como um modelo de vida e espiritualidade radicais, tratando um pouco de sua origem, formação, e de alguns fatos marcantes de sua trajetória e pensamento (1).

Não menos resumidamente, quero aqui partilhar algo mais sobre Nouwen só que de um jeito mais pessoal — forma predominante em seus escritos. Como eu o enxergo? Por que me tornei tão fascinado por sua vida e escritos? Que coisas tenho aprendido com ele?

Quem foi Nouwen?

Usando uma expressão de Zygmunt Bauman (2), para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas, por conectar-se e relacionar-se. Parte de sua veia artística está em ter conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, em suas próprias palavras, no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer amigos, criar comunidade, partilhar histórias” (3).

Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas mais naturais da vida — como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar, morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro e à singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações de um modo às vezes até constrangedor pra quem o lê.

Foi um discípulo radical e apaixonado por Jesus. Extremamente consciente de sua dependência de Deus e também de seu inacabamento, nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o que o Senhor queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na travessia e na escuridão”. O mais impressionante é que tanto a luz quanto a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para muitas pessoas.

Por que Nouwen?


Porque em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura recheada de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento sincero de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência foi um protesto contra o superficialismo e um rompimento com os dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência frágil e de uma melancolia esperançosa.

O que aprendi com Nouwen?


Dividirei esta breve incursão naquilo que aprendi com Nouwen por temas.

1. Vocação. Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confirme e capacite — o que dá um peso enorme à questão — o processo de despertar para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com Jesus em serviço ao seu reino. Isto significa que a pergunta pela vocação nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre tentando discernir os caminhos. É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os deficientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz” (4).

2. Sofrimento e fragilidade.
A vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como poderia ser?) só sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que privar-se da própria vida — e de tudo o que podemos aprender com ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto gente — ou uma gente da mais amarga espécie, dependendo de como o encaramos. O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a, fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo experimentado em minha própria pele. O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo ferido (5).

3. Integridade. Aprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto, da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida, por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a obra de Deus em nós” (6).

4. Alegria e tristeza.
Na vida e pensamento de Nouwen, como já disse antes, pode-se notar um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade, vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se conhece o que é tristeza. O próprio Jesus, como Nouwen diz, “foi o homem das dores, mas também o homem da total alegria” (7). Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido” (8).

5. Comunidade.
Vida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a comunidade — a partir do desejo que Deus cria em nós: “O Deus que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos semelhantes” (9) — e que se manifesta em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor, compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no conflito, na intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um “gesto humano” que relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a do irmão e da irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo. Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a “vida eucarística” é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome. Essa compreensão permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com familiares e amigos. Ele disse: “Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na sala de estar de meu pai, apenas ele e eu” (10).

A mensagem de Nouwen sobre a comunidade dá o tom de sua espiritualidade: não há um só ser humano que não receba o convite permanente para participar do banquete de celebração do amor do Pai. Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua forma de tomar a cruz.

Notas
(1) Ver: Jonathan MENEZES. “Henri Nouwen”. In: Novos Diálogos. Dicionário de Cristãos Radicais. Disponível em: .
(2) BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 70ss.
(3) NOUWEN, Henri. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2003, p. 170.
(4) Id. Gracias. A Latin American Journal. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1993, p. xvii.
(5) Id. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003, p. 10.
(6) Ibid., p. 15.
(7) Id. A Volta do Filho Pródigo. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 128.
(8) Id. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002, p. 42.
(9) Id. Com o coração em chamas. Meditação sobre a vida eucarística. Aparecida, SP: Santuário, 2005, p. 62.
(10) Ibid., p. 09.

Jonathan Menezes Professor de história e teologia na Faculdade Teológica Sul Americana e no ISBL – Centro Educacional Evangélico, em Londrina. É mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina.

@jonmenezes

sábado, 15 de outubro de 2011

Criança, uma pessoa a ser protegida


Por Israel Belo de Azevedo

Um pai policial.
Um menino de dez anos.
Um revólver acondicionado entre as roupas no armário.
Uma professora em uma de suas turmas na escola.

Numa manhã, o pai nota a falta da arma, vai preocupado ao colégio, pergunta ao filho mais velho, que nada sabe sobre o revólver.

Pouco depois, a história desaba sobre a família, atuante numa igreja presbiteriana, que poderia ser batista ou metodista ou assembleana ou católica ou não praticante de qualquer credo.

Com o revólver de trabalho do pai, o menino, que orava em casa e na igreja e que falava dos seus sonhos, dispara numa de suas professoras, que sobrevive, e, em seguida, atira contra si mesmo fatalmente.

O corpo do menino é enterrado e com ele toda e qualquer possibilidade de entendermos o absurdo absoluto. Ele se foi, mas é provável que tenha ficado no pai uma culpa imensa do tamanho do vazio da saudade do seu Davi.

Teria o menino visto nos noticiários alguma informação com este tipo de crime e se deixado influenciar? Nunca saberemos.

Teria o menino algum distúrbio psíquico que não fôra diagnosticado? Nunca saberemos.
Chocados, só nos ocorre que precisamos proteger nossas crianças.

Precisamos proteger nossas crianças das armas de fogo, que não sabem quem as aperta e não conhecem para quem são apontadas. Elas não sabem que matam, mas nós sabemos.
(Quem tem arma em casa pode garantir que o seu filho jamais a pegará?)

Precisamos proteger nossas crianças das drogas socialmente aceitas (como cerveja, cigarro e tranquilizante) e das drogas ainda socialmente recusadas (como maconha, cocaína e crack). Sabemos que a ilusória alegria que produzem tem efeito benéfico de curta duração e efeito maléfico de longo termo. (O princípio do "façam o que eu faço, não o que eu digo" é absolutamente verdadeiro.)

Precisamos proteger nossas crianças de qualquer negação de sua infância, venha ela da publicidade que quer torná-las apenas precoces consumidoras ou do sistema de valores marcados pelo consumismo, pela concorrência e pela disputa, essas coisas que nem os adultos deveriam subscrever como sendo suas marcas.

Precisamos proteger nossas crianças de terem que pagar a conta de nossos erros.

Mais que isto, baixado o silêncio dos meios sobre o drama de São Caetano do Sul, precisamos pensar naquela família como se fosse a nossa e, então (Mateus 7.12), orar por ela, para que Deus não permita que se deixe enterrar com a sua criança.

Precisamos orar todos os dias (o dia todo, se conseguirmos) pelas nossas crianças, como fazia Jó (Jó 1.5), para que sejam livres do mal, até do mal que sequer sabem que o estão cometendo, porque são crianças.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO

sábado, 8 de outubro de 2011

COMO CRIANÇAS


Por Richard José Vasquez

Ontem à tarde fui até o centro da cidade do Rio de Janeiro para resolver um assunto importante. Sempre que vou até lá, uso o Metrô, por ser um transporte que me dá maior mobilidade, menor desgaste e otimização de custo. Saí da estação terminal Saens Peña, na Tijuca. Duas estações à frente entraram uma senhora com três crianças, duas meninas e um menino. Todas com idade em torno de sete anos.

Elas faziam a maior festa. Tudo era novidade. Experimentavam tudo: encostar-se à parede do vagão, segurar naqueles tubos que têm essa função, tentar ficar soltas sem se segurar em nada, correr de um lado para o outro, e por aí vai. Sempre sorrindo e conversando umas com as outras. Não paravam um minuto. A senhora que estava com elas procurava alertar para eventuais situações de perigo, com muito carinho.

Num determinado momento, dois lugares do meu lado ficaram vazios e as três crianças vieram sentar-se ali. Continuaram conversando e rindo. Tudo estava bem, elas curtiam cada momento e uma à outra. Sem reservas, a alegria e a comunicação fluíam espontaneamente. Comecei a observar e a pensar: “Por que nós não agimos assim?” Sempre temos muitas reservas e muitas vezes nos “podamos” de usufruir determinadas situações colocadas diante de nós.

No meu pensamento comecei a lembrar que Jesus disse que temos de nos fazer como crianças para recebermos e entrarmos no Reino de Deus (Marcos 10.14-15). Fiz alguns paralelos com relação à minha forma de proceder e de encarar algumas situações. O trem chegou à estação em que eu iria descer. Saí e fui ao meu compromisso. Voltando para casa, aquela imagem vivida no vagão do Metrô continuou em minha mente.

Cheguei em casa. Depois de ajustar algumas coisas relativas ao trabalho, peguei o livro que estou lendo “O Poder de uma vida de Oração” para continuar a minha leitura, a partir do capítulo 3. Na folha anterior ao início desse capítulo está apresentado o seguinte título, para o que o autor chamou de Parte 1 (que cobre os capítulos de 3 a 8): “Aprendendo a orar como criança.” Para completar a relação direta do trem com o livro, os capítulos 3 e 4 têm os seguintes títulos, respectivamente: “Torne-se como uma criança”, e “Aprenda a conversar com o Pai”.

Concluí que Deus está me dando um toque para aprender com as crianças e agir como elas, quando necessário. Não me bloquear. Como criança. Ontem vi também o último programa da Oprah Winfrey, que existiu por 25 anos. Nesse programa foi destacado um fato de homens que sofreram abusos sexuais quando crianças (200 homens se apresentaram no programa com suas fotos quando crianças), enfatizando “a criança que existe dentro de nós e o trauma que ela carrega”.

Fiz então um paralelo: existe uma criança dentro de nós. Isso pode significar que sabemos agir como crianças (pureza, desinteresse, amizade, amor, carinho, solidariedade, falar do jeito que falamos – sem máscara). Quantas vezes colocamos uma máscara para mostrar exatamente o que não somos. Creio que é o momento de refletirmos sobre como estamos agindo. Com máscara ou sem máscara? Estamos sendo nós mesmos? Nos divertimos e agimos como crianças, quando pertinente? Grande abraço, boa semana.

E-mail: rjv@rjv.com.br Website: www.rjv.com.br

sábado, 1 de outubro de 2011

Semana de tratamento intensivo


Philip Yancey

Pensamentos que tive enquanto estava sentado ao lado do meu irmão, vendo seu cérebro e corpo pararem.

"Você senta-se para jantar e a vida como você a conhece acaba" – Joan Didion escreve em memória a morte de seu marido por ataque Cardíaco. Todos que já sofreram uma perda súbita sabem como é o sentimento de queda-livre.

A vida do meu irmão não terminou neste verão, mas sim em uma semana terrível de progressivos golpes.

Seu cérebro começou a desligar partes do seu corpo. Em uma sexta-feira, ele começou a ter problemas de visão.

Na segunda seguinte, dirigiu-se ao médico, que o enviou em uma ambulância a um hospital local.

Na terça-feira, ele falava claramente, algumas vezes, mas outras, apenas emitia sons sem sentido algum.

Quarta, ele podia andar, mas perdera o controle dos movimentos da mão e braço direito.

Na quinta, ele não ficava mais em pé e não conseguia seguir alguns simples comandos. Uma ressonância magnética mostrava um dano cerebral significativo.

Quando cheguei, no dia seguinte, meu irmão mal podia abrir os olhos e tinha perdido os movimentos do lado direito.

As vezes ele apertava minha mão justamente enquanto eu falava, e chorou por muitas vezes, então eu soube que ele entendia algumas coisas.

Após seu cérebro ter se estabilizado, um cirurgião, num procedimento de seis horas, abriu uma pequena janela em seu crânio, redirecionando uma artéria de seu couro cabeludo para dentro de seu cérebro. Passei toda aquela semana dividindo a sala de espera do hospital com outras famílias entre as horas de visita.

Nessas horas, estranhos passam a ser amigos íntimos. Uma mãe contou a história bipolar de sua filha, cujo pulmão, havia sido removido. Nós a víamos na fase maníaca, passeando pelos corredores com seu pacote de medicamentos de dispensacão; em sua fase depressiva os enfermeiros ficavam atentos a sinais suicidas.

Sozinho, sempre com um livro na mão, o namorado de uma jovem mulher, que teve uma overdose de Vicodin, manteve vigília em sua cama por três semanas. Perto dali, um homem indiano traduzia para sua esposa: após uma lesão cerebral, ela tinha perdido a habilidade de falar inglês, voltando a falar sua língua materna. Uma família desesperada colocava cartazes nos elevadores – Ajudem a Salvar a Vida de Nick! – Pedindo para que Americanos de origem asiática doassem medula óssea.

Infelizmente, alguns pacientes não tinham visitas. Diferente de riqueza e status, outras regras governam um hospital: O que tem valor não é o dinheiro, mas sim as visitas e o amor.

O megafone da misericórdia

Idosos parecem crianças e lesões cerebrais trazem alucinações. Pessoas usam palavras simples em torno de você e falam muito alto. Você precisa de ajuda com tarefas básicas como comer e ir ao banheiro.

Após a cirurgia, eu estava em êxtase sobre a habilidade de meu irmão de contar até cinco ou falar as palavras "Feliz Aniversário". Duas semanas antes, ele, um filósofo e grande pianista. Deveria ter visto conversando sobre Nietzsche ou Schubert.

Como um passarinho indefeso com seu bico aberto, nós, sua família ansiávamos por pedaços de esperança vindos da equipe médica. Saí dali com um novo time de heróis: enfermeiras e terapeutas. Jenny das Filipinas, Cristin a loira tatuada, mesmo a "Grande Enfermeira" Mary que poderia virar meu irmão de um lado pro outro com uma das mãos – foram a alegria e incentivo que não o deixaram desistir.

Com uma ânsia infantil, ele tentava agradar os terapeutas que trabalhavam sua fala e movimento. Ocorreu-me enquanto eu assistia esses profissionais, como nós severamente subestimamos o papel de capelães e pastores que fazem visita. Eles também oferecem os tesouros de esperança e conforto, tocando famílias em um momento único de vulnerabilidade e medo. Quantas igrejas de placa recompensam seus pastores por seu tempo gasto em hospitais?

A dor é o megafone de Deus, disse C.S.Lewis, uma imagem preocupante para alguns se isso implica que Deus causa a dor pela qual ele fala. Talvez a imagem da dor como um Trompete de ouvido – dispositivo cônico usado para amplificar o som antes da invenção da prótese auditiva – seja mais precisa. Nas salas de espera, em alas de UTI, até mesmo os agnósticos respiram uma palavra de oração, "Ajuda!" e ficam tensos aguardando alguma resposta. Enquanto trabalhava num hospício, minha esposa comentava sobre a diferença entre os visitantes que diziam "Boa sorte" quando eles deixavam o lugar, e aqueles que diziam "Eu estou orando por você" e faziam isso de verdade.

Meu irmão tentou ser cristão e decidiu que não funcionava pra ele. De um certo modo, ele acreditava ser amaldiçoado por Deus, imperdoavelmente. Na UTI, porém, ele apertava minha mão forte cada vez que eu orava em seu ouvido e muitas lágrimas escorriam por sua face imóvel. Deus pode falar em certos momentos. Lembro-me de como foi importante pra mim, controlar um problema, confrontar minha própria vulnerabilidade e dependência após ter quebrado meu pescoço em um acidente de carro há dois anos. Eu deixei o hospital em uma "Graça ofuscante" com uma imensa gratidão pela vida, que eu tenho esperança, de que nunca vai desaparecer.

Para serviços de tumulo o livro "Book of Common Prayer" inclui a verdade sombria, "No meio da vida nós estamos na morte." Nada demonstrou tão bem a fragilidade e a preciosidade da vida do que uma semana na UTI.

Tradução Filipe Menezes
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...