Por Carlos Queiroz
Vivemos numa sociedade marcada pelo pragmatismo, sucesso como sinal da interferência de Deus e progresso econômico como referencial de bênção. Mas, para quem vive ou trabalha entre os pobres esses sinais pouco, ou quase nunca, se manifestam. Por conta disso, caímos no desânimo, desencanto, frustração, e muitas vezes, em desespero. Alguns projetos sociais que acompanhei em Angola foram, literalmente, destruídos da noite para o dia, por causa da guerra. Causou dor no peito ver o que havia sido construído em dois anos ser consumido pela brutalidade desumana em apenas algumas horas, nas caladas da noite. Situações adversas sempre surpreendem quem vive engajado na luta em favor dos pobres. E, muitas vezes, chegamos ao ponto de desanimar. Todavia, mais do que resultados imediatistas materiais, guardo comigo os frutos da minha própria humanização apreendida a partir do pobre. Coisas boas sempre vão acontecer, mesmo em circunstâncias adversas. Quero animar você a não desistir, a continuar sonhando, a fazer do Reino dos Céus a possessão dos realizados com a vida, por serem pobres de espírito. Vamos juntos buscar algum entendimento, sobre o que Jesus queria nos ensinar, ao anunciar a felicidade dos pobres de espírito.
Há uma tendência de se espiritualizar a interpretação da palavra "pobre" nas Escrituras. É evidente que a Bíblia não fala de pobre dando somente uma conotação econômica e social. O pobre é apresentado também como uma disposição interior ou atitude de alma , que se coloca sob a total dependência de Deus. Mesmo assim, a maioria das palavras hebraicas usadas na Bíblia, para designar "pobre" tem em seu conteúdo literário a idéia de "pobre" como pessoa desprovida de bens materiais ou oprimida pelos ricos e poderosos. Nestes casos, em geral, os documentos, principalmente dos profetas, falam muito mais do juízo de Deus, em relação aos que provocam a injustiça do que da situação dos que a sofrem. Claro, que fica sempre evidente a parcialidade de Deus, do lado do pobre injustiçado, mas não se pode perceber em nenhum momento que eles sejam felizes porque foram injustiçados. Aliás, sob a lógica da sobrevivência, é necessário um milagre tremendo para se imaginar alguém em condição de felicidade por causa da pobreza. Além de outros males, a pobreza gera revolta, indignação, às vezes blasfêmia; na mesma proporção em que a riqueza também gera indiferença e materialismo idólatra.
Nos manuscritos mais antigos do texto de Mateus não se encontra o complemento: "de espírito", que a maioria dos tradutores preferiu acrescentar. E, tudo nos faz crer que não houve equívoco. Deram ao texto o sentido mais próximo daqueles, a quem Jesus estava denominando de pobre. Não era apenas o desprovido economicamente, o socialmente marginalizado, o psicologicamente oprimido. Pobre, no novo conceito de Jesus implicava numa condição de alma, num estado de espírito, numa nova atitude em relação a Deus. Jesus está falando de pessoas que confiam exclusivamente em Deus; sendo que a razão dessa confiança vem como resultado da incapacidade de confiar em si mesmas, pois não dispõem de prestígio, influência social e poder. Quem são geralmente, as pessoas com essas características, senão principalmente as pobres?
Portanto os "pobres" para quem Jesus foi ungido a evangelizar (Lc. 4:18), para quem são dadas as bem-aventuranças (Mt 5:1-12) para quem o evangelho é revelado (Mt 11:28), são os indigentes, carentes, fracos, sob humilhação, são os que trabalham dignamente e possuem somente o trivial, são os que vivem em condição de miséria absoluta. São ainda os cidadãos do Reino de Deus que, desprovidos de qualquer socorro humano e material, recorrem exclusivamente ao socorro de Deus. E por isso são felizes, conforme o Sermão do Monte; felizes por não acumularem tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem. São felizes porque foram cativados a servir, em adoração a Deus e amor ao próximo. Felizes por encontrarem a alegria do SER - a fonte onde a infelicidade não existe. Na escolha entre Deus e as riquezas, preferiram Deus; pois, segundo Jesus Cristo não é possível servir-se aos dois ao mesmo tempo. Em geral, as riquezas escravizam, reduzem as pessoas a serem devotas do ídolo do mercado. A grande maioria perde a sensibilidade humana, tornando-se pessoas avarentas, egoístas, enfim longe da felicidade que É. Do mesmo modo, podemos ter pobres, economicamente pobres, cuja esperança está prepotentemente enraizada na possibilidade de sua inclusão e aceitação pelo mercado, e não na esperança em Deus. Alguns por terem a riqueza adoram-na como ídolo; outros não a tem, mas põem nela toda a sua esperança, e tanto estes quanto aqueles, são miseráveis, pobres de fato, cegos e nus – são infelizes.
Felizes os pobres de espírito. Entre eles encontro aqueles que vão em busca do pobre sem dinheiro, do pobre que teve o direito usurpado, do pobre sem acesso a escola, sem lugar para morar, sem terra para cultivar o pão nosso de cada dia. Esses que vão aos pobres, dia a dia, trabalhando em creches, associações de bairros, entre os sem terra, sem teto - muitas vezes vão com a alma vazada de indignação com os dirigentes dos órgãos públicos, desencanto com a indiferença dos religiosos, alimentando-se do desespero de não perceber seus sonhos concretizados, e a despeito de tudo, são felizes. Felizes por terem sua sensibilidade humana redimida - os pobres nos humanizam. Felizes por terem uma decodificação do Evangelho simplesmente explicita no cotidiano do pobre - entre os pobres o Evangelho se enraíza. E assim, entre os pobres, o pobre de espírito recebe a revelação de que toda a esperança da vida não está no bem de capital de quem o possui, nem na expectativa de possuir algum dia, qualquer bem material. Entre os pobres, sem prestigio, fama, reconhecimento e poder, o pobre de espírito se percebe desnudo de qualquer riqueza - até mesmo da chamada riqueza espiritual, e diante da consciência de que nada possui, decide confiar exclusivamente na graça de Deus - e por isso, é especialmente feliz. Fora da Fonte encontra-se a infelicidade de não-ser, e aí está a tristeza eterna de muitos.
Continuemos entre os pobres alimentando sonhos e esperanças, mas acima de tudo sendo por eles humanizados e re-evangelizados, para que a nossa bem-aventurança seja completa na ressurreição de nossa humanidade.
Carlos Queiroz
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