sábado, 29 de janeiro de 2011

Monólogo da Mulher Adúltera


Por José Barbosa Junior

Desde pequena eu sabia o que era certo.

Meu pai, um dos principais da sinagoga, fazia questão de nos ensinar toda a Torá desde pequeninos. Na verdade, ele ensinava somente aos meus irmãos, mas eu me aventurava em ouvir os ensinos, escondida atrás da porta. Achava fascinante, e ao mesmo tempo pesado... eram tantas leis, tantos mandamentos...

Será que algum homem seria capaz de cumpri-los todos? Sinceramente, achava impossível... e me calava.

A esperança brilhava nos meus olhos quando o ouvia falando do tal messias, o que viria para salvar o seu povo. Como deveria ser? Será que o tal messias me olharia um dia nos olhos? Ou será que estava condenada a viver minha vida toda atrás das portas... escondida dos homens?

O tempo passou. Cresci, e ainda em minha adolescência fui obrigada a casar com um homem a quem não amava. Era o costume, e assim foi... Eu era cuidada por ele como um objeto precioso, havia respeito, mas não amor, amor que eu tanto procurava. Os amigos de meu pai me consideravam uma jovem muito bonita e faziam questão de externarem suas opiniões. Eu gostava. Não ouvia tais elogios de meu marido.

Fui me acostumando àqueles elogios. Na verdade alguns eram até ousados demais, e me deixavam sem graça, pois percebia suas intenções, podres intenções. Eram homens casados também, oficiais na sinagoga, alguns anciãos, outros mais jovens, mas queriam que eu os servisse, nem que fosse por uma noite apenas.

Aquela situação me causava muito desconforto. Sentia raiva,e até mesmo nojo daqueles homens... exceto um, que me chamava a atenção. Era casado também, mas parecia me querer bem... fui seduzida!

Nunca imaginara trair meu marido, mas naquela madrugada, antes do nascer do sol me entreguei àquele homem. Nem de longe imaginava o que ainda estava por acontecer.

Os outros homens, amigos do meu pai, haviam percebido o meu envolvimento, e seguiram-nos até nos pegarem em pleno ato de adultério. Meu dia estava apenas começando. Quanta vergonha!!!

Pegaram-me, nua, e carregaram-me para o Templo, onde um homem de Nazaré ensinava naquela manhã que nascia. Havia uma multidão para ouvi-lo. A vergonha era maior ainda. Muitos me conheciam... muitos conheciam meu pai... muitos conheciam meu marido.

Tive medo!

Fui jogada no meio da multidão, que se acotovelava para ouvir o tal profeta Galileu. Achei estranho perceber que estava só. Apesar de eu e meu então amante sermos pegos juntos no ato de adultério, apenas eu fui levada como adúltera... ele não!

Olhei então e vi aqueles homens que antes me assediavam, perguntando àquele Rabi: “mestre, esta mulher foi surpreendida em adultério. Na lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, porém, o que dizes?”

Eu olhava aquela cena e meu nojo aumentava. Os homens que queriam apedrejar-me eram os mesmos que viviam se insinuando para mim. Quanta hipocrisia. Quanto ódio tive da religião!

O tal Rabi galileu permanecia calado.

De repente, inclinou-se e começou a escrever na terra com seu próprio dedo. Eu não acreditava no que meus olhos começavam a ler.

Aquele homem começou escrevendo o meu nome, e abaixo do meu nome começou a enumerar os meus pecados. TODOS os meus pecados!

Eu queria a morte naquele momento. Que as pedras viessem logo. Não suportaria tanta vergonha.

Num ímpeto, o Rabi levantou-se e disse àqueles homens, meus censores, prontos a colocar sob um monturo de pedras mais uma adúltera: “quem dentre vós que não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” ... E voltou a escrever meus erros na terra.

Algo muito estranho começou a acontecer: a começar dos mais velhos, um por um, forma largando as pedras em seus pés, virando as costas, e indo embora.
Ficamos só eu e o tal profeta.

Eu tremia!

Ele calmamente levantou-se e veio em minhas direção. Percebi algo no seu olhar. Era diferente. Ele não me desejava. Vi amor no seu olhar. Nunca antes alguém havia me olhado assim. Enquanto caminhava em minhas direção, não tive como não perceber que suas pegadas firmes e constantes, pisavam e apagavam a minha enorme lista de pecados. Lembrei-me de um texto que sempre ouvia meu pai ensinar aos meus irmãos: “pelas suas pisaduras fomos sarados”.

Seria esse Rabi, diante de mim, o messias esperado? Bem que eu já havia ouvido rumores a respeito disso.

Ele aproximou-se de mim, e tirando a sua capa, cobriu a minha nudez. Perguntou-me com uma voz inconfundivelmente firme e amorosa: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?”

Minha voz trêmula conseguiu balbuciar: “Ninguém, Senhor!”

Ele então, segurando em minhas mãos e erguendo-me do chão, olhou nos meus olhos e disse: “Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais.”
Meus olhos marejados ainda puderam ver aquele homem se afastando e voltando a ensinar o povo. Eu estava verdadeiramente diante do messias!

Olhei para o chão e lá estavam todos os meus pecados apagados pela sola dos pés daquele rabi. Só uma coisa não havia sido pisado: o meu nome! Ele estava intacto, escrito pelas mãos do próprio salvador. Lembrei-me então de um outro texto sempre recitado pelo meu pai, acerca do messias: “Ele não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que ainda fumega...”

Fui para casa... mas sabia que daquele dia em diante nunca mais seria a mesma. Nunca esquecerei de seu olhar, sua voz, e seu amor: “Nem eu te condeno!”

Prossigo em meu caminho, às vezes tropeçando, mas sempre com sua fala graciosa ecoando em mim: “Vai, e de agora em diante... não peques mais!”

(Quero deixar bem claro que este é um exercício de FICÇÃO. É uma suposição de como o fato pode ter acontecido. Não é nenhuma "revelação" extrabíblica, mas apenas as suposições e a fantasia de um simples escritor)

José Barbosa Junior

sábado, 22 de janeiro de 2011

Com medo de ser feliz

por Ricardo Gondim

Eu não acredito que alguém possa achar a felicidade. Vou tentar explicar. Por muito tempo, embarquei na ideia de que a felicidade significava um estado de gozo, alegria ou, sei lá, que conduziria as pessoas a um nirvana terrestre.

Por volta dos quarenta anos, imaginava a felicidade como um retorno. Feito um Marcel Proust, busquei recuperar o tempo de meus verdes anos; quis reviver aventuras inconsequentes, idealismos quixotescos e fantasias onipotentes. Revirei gavetas em busca de antigas fotografias, voltei ao riacho onde pesquei lambaris com papai. Nessa jornada, tornei-me um arqueólogo ensandecido, caçando tesouros. Porém, quanto mais procurei, mais descobri escombros. Minha cidade, amores, fantasias, estavam cobertos de pó. Constatei que me tornava mais melancólico, e minha tristeza ficou proporcional à minha recusa de deixar o passado em sua sepultura.

Fui me tornando introspectivo, e a felicidade insistia em se distanciar de mim. Procurei, então, avivar a fé. Pensei: “Ninguém melhor do que Deus para fazer-me feliz”. Reli os Salmos, mudei de autores, refiz meu momento devocional e focalizei em espiritualidades diferentes. Inútil. Quanto mais me aproximei de Deus, mais me angustiei com os miseráveis, com a morte de adolescentes no tráfico e com o sofrimento das mães de excepcionais.

Mas, alucinado com a promessa de ser feliz, não poupei esforços. Tentei blindar o coração das dores alheias. Imaginei ser feliz repetindo a máxima sartreana: “O inferno são os outros”. “O egocentrismo”, pensei, “não é de todo ruim, pois preciso me precaver das mesquinharias e dos atropelamentos alheios”. O pior aconteceu!
Desconfiado e protegido por fossos, não encontrei amigos para repartir alegrias.

Fiz da felicidade uma obsessão, sem desistir, mesmo com a proximidade da velhice. Como aumentavam as chances de contrair doenças graves, tive pressa. Convivi com a morte de meus pais, despedi-me de amigos e encarei a minha decadência inevitável.
Mas a felicidade insistia em se afastar. Com urgência, acabei ansioso. Semelhante ao soldado que dispõe de duas horas para o descanso – percebe cada minuto e fica tão nervoso que não relaxa.

Tornei-me um goleiro que escolhe o canto errado na hora do pênalti. Tentei voltar do lado que oponara e, por mais que me contorcesse, não alcançava a felicidade. Nesse contrapé, confrontei o senso comum da felicidade.
Descobri que ela é passageira e, por isso, tão preciosa. Quem tentar segurá-la se frustrará. A felicidade se dá num momento impreciso; é tão frágil que se esgarça, tão volátil que evapora, tão efêmera que vira pó; só tem permanência na memória.

Somos felizes à medida que guardamos o que um dia nos marcou. A felicidade não passa de cheiros que lembram pessoas e lugares inesquecíveis; é um de já vu que ressuscita eventos submersos; é conversa de amigos narrando casos.
Descobri que a felicidade é subproduto, nunca um fim; ela não pode ser meta existencial. Ela é desdobramento da virtude, borboleta que pousa suavemente nos ombros de quem ama a bondade, defende a justiça e cultiva a solidariedade; não se esconde no pé do arco-íris, não espera numa praia paradisíaca e não escolhe os bem-sucedidos.

Felizes os que se deitam exaustos depois de cumprirem seus deveres; que emprestam o ombro para os aflitos, que padecem pela justiça e que se arriscam pela paz.
Iludi-me com uma felicidade que só aconteceria se me mantivesse ingênuo, se me condenasse à ignorância e anestesiasse a alma. A felicidade convive com a tensão. Por isso, é melhor a angústia à alienação, a dúvida à certeza, a tensão ao descaso, a incoerência à intolerância.

Quero aprender a ser bondoso mesmo que isso custe a minha felicidade. Jesus abriu mão de sua prerrogativa de ser feliz para perdoar os pecadores. Mesmo que os religiosos o tenham assassinado, seu gesto salvou multidões. Caso acompanhe suas pegadas, vou sentir-me realizado e não importa se serei feliz.

Soli Deo Gloria.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Que tipo de pessoa estou me tornando?

por Eduardo Rosa

Somos capazes de nos orgulhar de coisas em nós que são essencialmente vergonhosas.

Estou lendo a autobiografia de Andre Agassi. Para aqueles que não acompanham as competições de tênis, talvez tal nome não diga nada. Porém, os fãs desse esporte sabem que Agassi é considerado um dos cinco melhores tenistas da história. Um espetacular jogador, que, curiosamente, entrou nas quadras não por opção, mas pela intensa obsessão do seu pai. Quando o filho tinha cinco anos, ele já o forçava a bater na bolinha amarela com uma raquete. “Você tem que rebater diariamente 2.500 bolas, para sonhar ser um grande tenista”, dizia repetidamente.

No penúltimo jogo da sua carreira, prestes a abandonar as quadras, Agassi descreveu uma interessante jornada por suas memórias. Mentalmente, viu dentro de si a criança que um dia foi, rebatendo bolinhas como louco, para alimentar um sonho que não era seu. Lembrou-se dos altos e baixos, das dores e alegrias, de tudo quanto fizera até chegar àquele condição – um homem rico, famoso e consagrado. A criança do passado fora substituída por um superastro, mas ele não pôde deixar de fazer a si mesmo um inquietante questionamento: será que a pessoa que havia se tornado era alguém de quem o menino que ainda trazia consigo teria orgulho? Por outras palavras: ele realmente poderia se orgulhar da pessoa que havia se tornado?

Esta não é uma pergunta que, de tempos em tempos, todos nós deveríamos nos fazer?
Nós, que somos engolidos pelo cotidiano, pressionados pelos compromissos profissionais e financeiros, sobrecarregados pelas múltiplas demandas pessoais e familiares; nós, que corremos atrás do vento, buscando resultados e reconhecimento; que lutamos para manter um padrão de vida – o que muitas vezes acarreta o sacrifício de sua qualidade – e que acordamos cedo e dormimos tarde, na tentativa de aliviar o cansaço para logo depois começar tudo novamente... O tempo vai passando e, à medida que a vida escorre, eu e você vamo-nos transformando em alguém, vamos sendo moldados nas formas da nossa existência. É uma metamorfose inexorável, da qual ninguém escapa.

Experiências boas e ruins vão compondo nossa jornada. Elas podem nos transformar em um indivíduo a ser detestado por nós mesmos ou pelos outros ou em alguém que nada mais é que uma versão madura e bonita da criança que um dia fomos. Acontece que podemos nos tornar uma pessoa deformada e detestável e, ainda assim, gostarmos desta versão de nós mesmos. Somos capazes de nos orgulhar de coisas em nós que são essencialmente vergonhosas. Por isso mesmo, uma segunda reflexão, ainda mais desafiadora, nos é colocada. Será que estamos nos transformando na pessoa que Deus deseja que sejamos?

Verdade que a pessoa em quem estamos nos tornando não é uma criação somente nossa. Ela é resultado das múltiplas influências que incidem cotidianamente sobre nós. Ao longo dessa jornada chamada vida, vamos interagindo com pessoas, com ambientes, com experiências – e é o somatório disso tudo que nos transforma em quem somos. Por saber disso, Deus coloca santas influências em nossa vida, para que, a partir delas, cada um de nós possa ser moldado às condições que ele gostaria que tivéssemos. Quanto mais convivemos com elas, tanto mais próximos estamos do desejo do Senhor. Se descobrirmos quais são essas influências divinas que atuam sobre nós, poderemos, conscientemente, conviver mais de perto com elas, a fim de que sejamos transformados em alguém de quem não somente nós mesmos gostemos, mas, sobretudo, que agrade ao Pai de amor.

Em sua infinita sabedoria, Deus encontrou uma maneira emblemática de nos ensinar isso. Um dia, no passado, ele mandou um de seus profetas entre o povo de Israel, Jeremias, visitar o atelier de um ceramista. Lá chegando, ele viu as hábeis mãos do oleiro transformar lama e barro em lindos vasos. Aquela matéria prima disforme e de aspecto desagradável, nada mais que terra misturada à água, virava verdadeiras obras de arte. Deus queria que o profeta e todos nós víssemos que esta era a história dele conosco. Sim, não importa que sejamos apenas lama, mas sim, aquilo em que podemos nos tornar – vasos de barro, feitos para a glória do Senhor.

Andre Agassi teve a coragem impressionante de admitir que sempre detestou o esporte ao qual se dedicou durante trinta anos. A razão disso? Ele simplesmente descobriu que viveu para ser alguém que era simples projeto de um pai tirano. Ainda bem que tanto ele como nós podemos buscar coisa diferente: ser aquela pessoa que o Pai deseja que cada um de nós seja. A pergunta crucial, que cada um de nós deve responder a si mesmo, é: Que tipo de pessoa estou me tornando?

sábado, 8 de janeiro de 2011

Tempo de quietude


por Ricardo Agreste

“Existem tempos em que o Senhor nos convida a ficar em sua presença, e ali acalmar nossa mente e renovar nossa alma.”

Eu estava de saída para uma viagem a Santiago do Chile, a fim de participar de uma conferência com pastores e líderes locais. Ainda no aeroporto, aguardando o vôo, conversava com Deus sobre o meu momento de vida. Dentre muitas coisas, pedia ao Senhor sabedoria e orientação diante do cenário que me envolvia. Semanalmente, novas oportunidades surgiam diante de mim; novas demandas emergiam em minha agenda e novas conversas aqueciam meu coração para projetos aparentemente fascinantes.

Estava preocupado diante de tudo aquilo que acontecia. Sei que uma das razões que fazem com que homens e mulheres de Deus acabem por se perder, mesmo que bem intencionados em suas motivações iniciais, é a falta de uma clara percepção acerca do mover de Deus em suas vidas. Muitos passam a entender que toda oportunidade que surge é uma porta aberta pelo Senhor, ou que toda demanda que emerge é um desafio lançado pelo Espírito Santo. Há também aqueles para quem qualquer conversa que lhes aqueça o coração é uma visão de Deus que precisa ser assumida.

Para os que enxergam a vida nesta perspectiva, o mover de Deus acaba se confundindo com o empreendedorismo de nossos tempos ou com o anseio insaciável de nossas almas por sermos tidos como pessoas relevantes diante do mundo. Para gente assim, o mover de Deus sempre as convida para um tempo de ir, correr e vencer. Não existe a possibilidade de o Senhor chamá-las a um tempo de ficar, aquietar-se e renovar-se.

Por isso mesmo, querendo conquistar o mundo, acabam, infelizmente, perdendo a própria alma. Em meio às muitas oportunidades, demandas e desafios, confundem a ação do Senhor com as expectativas do meio ou com os anseios de seus próprios corações.

Na vida do rei Davi, os desertos se tornaram o convite de Deus para um tempo de contemplação e reflexão. Ele era um homem movido por desafios e com constante ímpeto para a ação – por isso, parece que somente em meio às adversidades ele encontrava tempo para redimensionar seu próprio coração. Assim, quando lemos as orações de Davi no livro de Salmos, percebemos um homem sondando sua própria alma e procurando perceber a ação de Deus em sua vida. Em situações de adversidades, dores e aflições, Davi se convencia de que seu Deus não o convidava constantemente a ir, correr e vencer; mas, em algumas ocasiões, o impelia a ficar onde estava, aquietar o coração e renovar sua alma.

Maria, irmã da superativa e dinâmica Marta, viveu uma situação diferente. Em sua vida, o tempo de ficar, aquietar-se e renovar-se não é fruto de uma situação criada por Deus, mas de opções que precisava fazer. Cercada por gente constantemente voltada para a ação, que enxergava cada oportunidade como porta aberta pelo Senhor, cada demanda como um desafio do Espírito e cada conversa como visão de Deus, torna-se normalmente mais difícil encontrar espaço para aquela reflexão espiritual.

Mas Maria rompe com seu ambiente, resiste às expectativas que as pessoas à sua volta tinham acerca de si e resolve sentar-se aos pés de Jesus para ouvi-lo. Jesus, por sua vez, encoraja a opção feita por Maria, demonstrando que na caminhada cristã há, sim, tempo de simplesmente ficar, aquietar-se e renovar-se.

Mas o maior exemplo de que Deus nos convida a esses momentos encontra-se na própria vida de Jesus. Em seu curto ministério terreno, Cristo tinha um enorme desafio diante de si. As demandas eram inúmeras; as necessidades, infindas, e as frentes de trabalho, imensas. No entanto, vemos nos Evangelhos episódios em que o Filho de
Deus sobe montes ou procura lugares desertos a fim de simplesmente ficar, aquietar-se e renovar-se na presença do Pai. Apesar da pressão das multidões, ele afastava-se em submissão ao mover de Deus para um tempo de silêncio e descanso. No entanto, este não era um tempo de contraponto à sua missão – mas sim, um espaço integrante e essencial na mesma.

Durante uma manhã livre naquela viagem a Santiago, um querido e antigo amigo me levou para subir as cordilheiras até um lugar chamado Vale Nevado. Fomos e voltamos conversando sobre muitas coisas. Há muito tempo não tínhamos oportunidade de nos falar. No entanto, em meio às muitas palavras e diante de paisagens fantásticas, deparei-me com uma cena que me chamou a atenção. Do local, podíamos contemplar um enorme e fantástico monte coberto de neve. Seu aspecto era imponente e fascinante.
Era impossível passar por ali sem admirá-lo. Mas ainda no mesmo foco de visão, bem mais próximo de nós, na margem da estrada, inúmeras árvores com seus galhos completamente secos contrastavam a imponência e fascínio da montanha branca.

Minha atenção ficou dividida entre as duas cenas contrastantes. Foi então que meu amigo, olhando para aquelas árvores, disse: “Interessante, não? Elas parecem mortas. Quem olha pensa que não resistiram ao inverno. No entanto, estão assim porque, percebendo o rigor da estação fria, concentram suas forças e energias no caule. As folhas caíram e os galhos secaram, mas toda a sua vitalidade encontra-se concentrada no caule. Para elas, agora não é o tempo de florescer, mas de resguardar-se para, no tempo certo, voltar a produzir folhas, flores e frutos. Este é o ciclo da vida.”

Ouvindo aquelas palavras e tendo os meus olhos fixos naquelas árvores, ouvi a resposta de Deus para a oração que havia feito antes de partir do Brasil. Nem sempre é hora de ir, correr e vencer. Existem tempos em que o Senhor nos convida a ficar em sua presença, e ali aquietar nossa mente e renovar nossa alma. Em meio a tantas coisas e situações que nos envolvem, precisamos ter a sensibilidade para perceber que o Senhor, por vezes, não deseja que façamos tudo ou aceitemos todos os desafios. Existe também o tempo em que seu mover nos convida a concentrarmos nossas forças e energias no que é essencial e imprescindível: a nossa relação com ele.

Às vezes, como acontecia na vida de Davi, Deus precisa criar desertos em nossa história para nos convencer desta verdade. Noutras situações, assim como o fez Maria, podemos exercitar nosso poder de decisão contra o meio que nos impele a constante atividade, optando por simplesmente quedar-nos aos pés de Cristo. Mas também podemos olhar para Jesus e perceber o convite para vivermos em maturidade, integrando este tempo como parte essencial e imprescindível da missão de Deus para as nossas vidas.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Receita de ano novo

por Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
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