segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Intimidade com Deus refletida na partilha do pão‏

por Carlos Queiroz


"Pai nosso que estás nos céus"

Em Mateus a oração do "Pai Nosso" faz parte do famoso e conhecido Sermão da Montanha, proferido por Jesus. Neste sermão, Jesus trata cada assunto com a simplicidade da vida ao mesmo tempo em que aprofunda os seus ensinamentos. Para John Stott o sermão é radical, pelo fato de Jesus lidar com temas relevantes da existência humana e os trata a partir da raiz dos problemas. Nesse contexto é introduzida a oração ensinada aos discípulos do Senhor. Portanto, com a mesma perspectiva e radicalidade do sermão. Jesus não pretende ensinar uma oração a ser meramente repetida na superficialidade litúrgica, não uma forma, que somente decorada e reproduzida, traga efeitos mágicos à vida dos seus seguidores. Orar, segundo o estilo de Jesus Cristo, não se resume na formulação de jargões, fraseados bem construídos, mesmo que elaborados com estilo e fundamentos bíblicos e teológicos. Naturalmente não descartamos a beleza de uma oração bem elaborada. Os salmos, por exemplo, são peças elaboradas com fundamentação teológica correta, e poesias feitas com muita técnica e maestria.

Todavia, orar na experiência de Jesus era um modelo de ser acolhido pelo Pai na privacidade da vida, na intimidade do lugar secreto. "O Pai que vê em secreto..." Seja este lugar o quarto, onde podemos orar de joelhos, rosto em terra, com lágrimas ou sem lágrimas, lugar onde, despir ou não despir, não fará diferença. Seja este lugar o deserto solitário ou a noite silenciosa, o importante e significativo na oração é manter a relação íntima paterno-filial com Deus de onde desabrocham os relacionamentos com as demais pessoas e a maneira de se encarar a dor e sofrimento dos que não possuem pão.

Do ponto de vista da forma e estruturação litúrgica o "pai nosso" não inovou em basicamente nada. A inovação que faz a grande diferença entre o "Pai nosso que estás nos céus" e as demais orações é a seguinte.

Primeiro: "O Pai Nosso" enfoca uma nova maneira de nos colocarmos diante de Deus numa profunda e pessoal relação de amizade de pai para filho. Sem esta relação íntima com o Pai não adiantam formas, lugares, bons hábitos de oração, linguagem rebuscada, correta e burocrática das liturgias religiosas. Oração ao Pai antes de ser um modelo prefixado requer uma entrega na base da confiança, um relacionamento alicerçado no amor, um desejo profundo de ser amado e perdoado pelo Pai. Este aspecto inovador relacional com Deus na oração de Jesus, é exclusivo dEle e dos seus discípulos. Jesus começa a oração usando uma palavra aramaica com a qual o filho se dirigia ao Pai dentro de casa e que significa "papai". Fora de casa, o pai era tratado por "senhor". Jesus ao orar várias vezes "Abba-Pai" não o fazia para conquistar uma intimidade, mas para expressar a relação familiar já existente. Abba-pai é a oração da intimidade do quarto: "Tu, porém quando orares entra no teu quarto, e fechada a porta, orarás a teu pai que está em secreto e teu pai que está em secreto te recompensará." (v.6.). O termo grego utilizado, "tameion" é mais sugestivo do que quarto. "Tameion" é o lugar onde se guarda o tesouro, depósito subterrâneo; lugar de difícil acesso. Fora do lugar secreto, ou "tameion", a oração torna-se manipulável a serviço da publicidade e propaganda do orante.

Jesus não está ensinando uma oração privada individualista, mas procurando desmascarar a futilidade do uso publicitário da oração para o prestígio pessoal. Era assim o estilo dos hipócritas; "...gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens". (v.5.). Portanto, "Abba-Pai" na intimidade, de modo que somente o pai perceba, é uma disciplina espiritual que nos ajuda a crucificar o exibicionismo e a hipocrisia.
"Abba-Pai" é a oração de homens e mulheres a quem Deus conhece e sabe de suas necessidades (v.7). Por isso não temos necessidade de nos assemelharmos aos gentios ou pagãos. Àqueles que oram repetindo palavras, fórmulas na tentativa de inclinar Deus aos seus desejos, estão orando à semelhança dos pagãos. Os pagãos acreditavam que os seus deuses lhes escutariam pela muita repetição das palavras. Eles entendiam essa maneira de orar como uma técnica para aplacar a força divina em serviço próprio. No mundo cristão, há aqueles que se utilizam de modelos pagãos, achando que pelo fraseado, Deus irá lhes atender, talvez usando um argumento forte baseado nas Escrituras, uma promessa, por exemplo. Não muda em nada, Deus conhece todas as vossas necessidades. Não adianta a frase em nome de Jesus Cristo se o propósito de nossa oração não faz parte dos interesses de Deus.

"Abba-Pai" é a oração dos interessados e engajados nos projetos de Deus. É a oração daqueles que independente de adquirir ou não coisas e bens, através de suas orações, ou mesmo se tiverem que correr riscos por causa do Reino de Deus, mesmo assim, preferem a comunhão com o Pai. "Abba-Pai" é a oração da entrega incondicional. "Pai se possível, passa de mim este cálice...", mas entre a morte e a nossa intimidade, entre a morte e a quebra da Tua vontade, é preferível a morte. Orar em nome de Jesus Cristo significa que Ele pôs o Seu nome em risco para os propósitos de nossa oração.

Para filhos que guardam tão estreita relação, o pai não somente conhece as suas necessidades, mas pode declarar a sua apreciação; "Este é o meu filho amado em quem eu tenho prazer". Deus porventura, diria o mesmo sobre você? "Abba-Pai" é a oração daquele que fala com Deus e ouve a voz de Deus. Ás vezes não paramos para ouvi-lo.

Oramos com tanta angustia que só nós falamos. Certa feita uma jovem me perguntou:
- Pastor, por que Deus não responde as minhas orações? Falo com Ele, não tenho parado de falar, mas não escuto resposta.
- Como você vai ouvir se não parar de falar? Se já falou, procure escutar. - Sugeri.

Oração é uma via íntima de duas mãos. Precisamos falar, mas necessitamos exercitar interpretar a voz mais profunda do silêncio de Deus.

Segundo: A oração ensinada por Jesus era inovadora porque aponta para uma nova maneira de encarar as pessoas na reciprocidade do amor. Se amamos a Deus, amamos também os nossos irmãos. Se somos perdoados por Ele também perdoamos os nossos irmãos; "perdoa-nos (...) assim como nós temos perdoado (v.12). Na tradição religiosa judaica era conhecido o perdão oferecido por Deus àqueles que oram, mas em nenhuma tradição encontra-se a oração onde aquele que ora perdoa o seu irmão. Na oração - estilo de vida apresentado, orar não é uma ação privada-individualista. Por mais paradoxal que possa parecer, orar é a encubação da amizade com Deus na intimidade, e em lugar secreto, sendo ao mesmo tempo, vivida e ensinada no lugar mais elevado à vista de todas as demais dimensões e relações da vida. Comunhão com os irmãos, fundamentada no amor, na reciprocidade do perdão é essencialmente novo na oração do "Pai Nosso".

A primeira pessoa do plural usada na oração de Jesus evita que a oração-estilo caia nas práticas esotéricas, onde o homem é convidado a sair de si para o além. O modelo de vida ensinado por Jesus é: "Pai nosso", "Pão nosso", "Perdoa as nossas dívidas", assim como nós perdoamos aos nossos devedores; não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal..." O "Pai nosso " é a oração que brota frutos no outro lado da porta e janelas do quarto. O "nosso" quebra a tentação da oração privada-individualista.

O quarto é o ponto de partida, o depósito subterrâneo onde Deus planta em nossos corações a semente do amor, aguada e fertilizada pela oração. Porém os frutos dessa semente germinam no relacionamento familiar, na convivência com irmãos e amigos, no trato amável e pacificador de relacionamentos desgastados, na consciência de nossa vocação e consequentemente na eficácia de nosso ministério.

Pai nosso é a oração que nos projeta do nosso "tameion" (amizade com Deus), para o "quarto" dos filhos. Da relação de amor e confiança com o Pai, capaz de desembocar numa intimidade profunda e relevante com a família.
"Pai Nosso", porque Deus é pai do irmão que sem motivo se irou contra você. E quem ora ao Pai, não consegue ficar diante do altar da liturgia, sem primeiro reconstruir o altar da amizade, uma vez que não existe no estilo de Jesus a oração ao meu pai, e sim ao "Pai nosso". Quem ama a Deus ama também ao próximo.
"Pai Nosso" é a oração do Getsêmani com a comunidade dos discípulos amados, é a transfiguração com Pedro, Tiago e João. É a oração sacerdotal, cujo ênfase concentra-se na confluência dos relacionamentos. "Como és tu ó Pai em mim, e eu em Ti, também sejam eles em nós".

O Pai nosso é a oração do "Pão nosso de cada dia". O pão nosso de cada dia é um pedido para o suprimento material. Pedimos e recebemos o pão-de-cada-dia. Alguns têm além do pão de cada dia - possuem o pão acumulado para cinqüenta, cem anos. O pão nosso passa a ser um problema da nossa falta de espiritualidade, quando o outro não o tem. Para muitos o "Pai-nosso" pode ser compartilhado, dividido, mas o pão, este deixa de ser nosso, é um ídolo que só na reza, na burocracia religiosa pertence a comunidade. O pai nosso é também a oração do pão de cada dia do outro.

É a oração da reciprocidade do perdão. É a intercessão íntima, profunda, comprometida com a superação da crise de tentação da comunidade. É o gemido para que o Senhor nos livre do mal, porque se ele(mal) ferir um membro do corpo, todos os outros membros sofrem com ele. Porventura sofremos com a dor da mulher marginalizada, da criança sem teto, do índio dizimado?

Portanto a oração do Pai-nosso é a comunhão existente somente na primeira pessoa do plural.

Terceiro: É essencialmente novo que o Deus a quem oramos é Pai, é "nosso", mas é acima de tudo Pai que está nos céus. Não é um ídolo terreno projetado materialmente em gesso, pedra, ouro ou qualquer outro material," não é fruto da imaginação construído em nossa realidade cultural-religiosa com o nome de deus e em muitos casos com o nome "Jesus", que nem sempre, refere-se ao Jesus Cristo, conforme as Escrituras.

A oração é feita a um Deus transcendente, todo-poderoso, imutável, infinito, que conhece, e por isso não se impressiona com aqueles que oram repetindo palavras, nem com aqueles que dão esmolas para serem visto pelos homens. Não se deixa comprar pela confissão labial: "Senhor, Senhor..." não se curva diante da reivindicação daqueles que mesmo tendo profetizado, expelido demônios ou feito milagres e nunca aprenderam a orar como estilo de vida em amizade e comunhão com o Pai. A estes o nosso Pai do céu dirá: "Nunca vos conheci..." Não tivemos qualquer momento de comunhão e relacionamento paterno-filial.

O Pai que está nos céus não é manipulável, é totalmente independente, inconfundível com qualquer ídolo terreno. Por isso Jesus propõe um relacionamento baseado no amor, confiança, confissão, transparência... Os artifícios não funcionam com Ele, porque o Pai nosso que está nos céus conhece todas as coisas.

Que a nossa oração seja um mergulho nas profundezas do coração, um recolhimento ao "tameion" este depósito subterrâneo da alma invadido pelo Pai celestial, o todo-poderoso Deus, diante de quem não há coração que possa se esconder, não há mente capaz de fugir de sua santa e graciosa ação. Com a invasão dEle o pão é mais facilmente dividido pela consciência de justiça que brota de corações puros e misericordiosos.

Que assim aconteça para que o Deus dos céus nos ajude a repartir o pão da terra.

3 comentários:

  1. eu conheço o autor, ele não é deste mundo mesmo;-)

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  2. Que boa surpresa encontrar seu Blog JH!!!
    Feliz 2010! Vou dar uma vasculhada por aqui pelos seus textos! Abs, do amigo paulista vivendo na sua cidade!!!

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  3. Oi Rani, pois é, todo mundo tem que ter um blog ne? :-)
    Eu resolvi criar um para compartilhar os textos que eu envio aos amigos.
    Abraços

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