sábado, 12 de maio de 2012

Que tenho eu contigo, mulher?



Por Lília Marianno

Publicado em 15/4/2012

Sempre fiquei intrigada com esta expressão no episódio do Casamento em Caná da Galiléia, narrado em João 2. 1-12, aparentemente desrespeitosa da parte de Jesus.


Caná, mas que lugar! A aldeia era tão pequena que nem no mapa aparecia. Devia ser muito pobre para não ter qualquer relevância político-econômica que a fizesse merecer um lugar no mapa. Com certeza um vilarejo pequeno, nas imediações de Nazaré, onde vivia a família de Jesus, os irmãos/ãs, primos/as, tios/as e avôs/ós de Maria e de José, o carpinteiro. O casamento devia ser de alguém da família, pois Maria estava no lugar, talvez como uma das organizadoras (v. 1).

Neste episódio o carpinteiro já não aparece mais. Jesus era o homem da família de Maria, o “pai” de seus irmãos mais novos. Mas pelo cenário descrito, Jesus já não morava mais em casa, pois o texto diz que ele foi convidado com seus discípulos. Ou seja, eles se dirigiram para lá para o casamento. Depois diz que, terminado o casamento, Jesus foi para Cafarnaum com sua mãe e irmãos (e com os discípulos a reboque) e passou alguns dias com os seus (v.12).

Mulheres viúvas e divorciadas, que possuem filhos homens, experimentam um nível de relacionamento diferente com os filhos. Eles são meio filhos, mas meio homens-da-casa. É uma situação de ambiguidade que muitas vezes causa confrontos e desconfortos, pois eles querem ser filhos o tempo inteiro, desejam os mimos e dengos dos tempos de bebê, não desejam ser cobrados, mas a mãe necessita que eles se tornem homens, responsáveis, provedores, e rápido.

O que faz uma mãe viúva (ou divorciada) que tem um filho mais velho, quando a comida acaba? Ela fala: “Filho, não temos mais comida! O que vamos fazer?”. Enquanto lia esse texto, me veio esta cena à mente. De uma mãe atarefada com a manutenção da festa de casamento daqueles parentes pobres — e casamento sempre durava vários dias naquela cultura — quando, de repente, o vinho acabou! “Ah, coitados dos noivos! Eles vão passar tanta vergonha! A festa terá que ser interrompida antes do previsto. Terão que mandar os convidados embora! Que vexame!”. No lugar de Maria, eu teria pensado tudo isso e teria ficado apreensiva pelos noivos, ou por mim mesma, já que teria me metido a organizar uma festa de gente pobre e calculei mal a quantidade de vinho, ou o povo bebeu mais do que o esperado, ou ainda, o pais dos noivos eram pobres demais para suprirem a festa como devia. O fato é: o vinho acabou. Penso que a atitude de Maria foi instintiva: “Filho, eles não têm mais vinho!”; fez como fazia em casa.

Há um código indecifrável ao olho humano aqui nesta cena. Só entende este código o coração do filho ligado ao coração da mãe desde o ventre. É aquele vínculo que nos fazia conversar com o embrião quando nem sabíamos ainda se seria um menino ou menina. Vínculo da certeza de que aquele era um filho da promessa e não seria uma menina. Até poderia ser, mas não será porque Deus falou que seria um homem.

A tradição tem perpetuado que José possivelmente morreu e Jesus teria tomado conta da casa até que começou seu ministério itinerante. Se isso aconteceu de fato, Maria e Jesus passaram um bom tempo se relacionando num outro nível: ela como mãe da família, mas ele como chefe da casa. A ele ela recorreu nas tantas vezes em que a pobreza imposta pelo imperialismo romano deixou a família com tantos meninos pequenos sem comida. Maria conhecia o filho que tinha. Provavelmente quando esses episódios aconteceram na sua família, Jesus, de uma forma miraculosa, deu pão a quem tinha fome. Aliás, a continuação do seu ministério nos mostra que ele não aguentava ver gente com fome por perto, dava um jeito e multiplicava os pães. Eu quero crer que Maria já conhecia o que acontecia em casa quando
Jesus orava e dava graças pelo pão que eles não tinham. O pão simplesmente surgia!

Penso que foi com essa experiência, de panelas vazias, no imaginário, que Maria chegou para Jesus e disse: “Eles não têm mais vinho!”. Ela tanto sabia que ele iria solucionar aquela situação que, mesmo depois da enigmática resposta de Jesus, ela falou aos servos: “Façam tudo o que ele vos disser” (v.5). Esta ordem é muito interessante, porque, afora Jesus e Maria, os servos foram os únicos que sabiam o que realmente se passava. É de admirar que este milagre tenha vindo para o registro bíblico, pois foi um milagre de bastidores que ninguém ficou sabendo.

Em nenhum momento a resposta de Jesus soou a Maria como desrespeito, como nos parece, a olhos ocidentais. Tenho lido inúmeros comentários sobre esta frase “Mulher, que tenho contigo? Ainda não é chegada a minha hora”. Confesso que nenhuma das muitas explicações me convence, a não ser aquilo que o coração de mãe me explica. Vejo Jesus dando uma piscadinha pra sua mãe falando: “Mãe, sossega, eles ainda não podem saber quem eu sou”.

Mas a mãe conhecia o filho que tinha. Ela já o tinha visto em ação antes. E por tantas vezes apenas “guardava no coração” tudo o que via. Maria era uma mulher silenciosa sobre estas coisas essenciais. Talvez como é natural de toda mulher, ela falasse bastante; mas o texto bíblico a relata muito silenciosa, como alguém que mais guardava o que via do que falava. Mas o filho também conhecia sua mãe e não conseguia deixar de ajudá-la. Quando ninguém estava vendo, ele foi aos servos e mandou encher as talhas com água, depois mandou levarem ao mestre-sala.
Bem, o resultado foi que o noivo acabou levando a bronca do mestre-sala: “Meu jovem, como você faz isso? Você tinha que ter servido o vinho bom primeiro, o velho vinha depois, quando todos já estivessem bêbados e nem notariam mais a diferença. Você guardou o bom até agora! Essa juventude!”.

E o noivo ficou ali, desconcertado, sem saber como explicar aquilo, enquanto Jesus e Maria novamente trocam piscadelas.

Ah! Essa divina ligação entre mãe e filho! Como explicá-la?

Lília Marianno

Administradora e teóloga, é professora dos cursos de Administração e Recursos Humanos no Centro Universitário UNIABEU onde também coordena a Pós-Graduação em Literatura Bíblica. Mestre em Ciências da Religião pela UMESP e em Teologia Bíblica pelo STBSB. Pesquisa conflitos e seus reflexos nas relações de gênero, classe, etnia, religião e trabalho. É diretora na Eagle Gestão de Ensino e integra a diretoria da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica - ABIB.

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